O Brasil é considerado um país sem memória. Na frase de Ivan Lessa, a cada 15 anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos. Por isso, quando nos deparamos com um manancial como o reunido pelo documentário "Imagens do Estado Novo - 1937 a 1945", atualmente em exibição, vamos de uma surpresa a outra em face do muito que foi preservado.
O autor, Eduardo Escorel, é um cineasta comprovado, montador de filmes lendários como "Terra em Transe" (1967) e "Macunaíma" (1969). Com quase quatro horas de duração, este documentário sobre a ditadura do Estado Novo completa três anteriores —"1930 - Tempo da Revolução" (1990), "32 - A Guerra Civil" (1993) e, talvez o melhor deles, "35 - O Assalto ao Poder" (2002)—, todos com produção de Claudio Kahns a partir de projeto de André Singer, totalizando outros 196 minutos.
Em seu novo trabalho, Escorel dispensou os depoimentos de historiadores para se ater às imagens tremeluzentes. Parte delas são trechos de cinejornais e das filmagens de propaganda. Era um tempo de banquetes oferecidos às "classes armadas" (generais) e aos "príncipes da igreja" (prelados católicos), de comícios onde se veem multidões uniformizadas num mar de paletós e chapéus.
José Américo de Almeida, Osvaldo Aranha, Gustavo Capanema aparecem como ectoplasmas. Armando de Salles Oliveira, governador de São Paulo que criou a USP (1934) sob os auspícios do jornal O Estado de S. Paulo, faz perorações à moda antiga, a voz empostada e cantante, em sua bem-documentada campanha à Presidência, que o golpe de 1937 liquidou. Filinto Müller, o sinistro chefe da polícia política, surge em cenas de intimidade familiar com o ditador sorridente.
Tais imagens políticas são alternadas com outras sequências, extraídas de filmes domésticos. Aqui as pessoas ostentam aquele acanhamento, entre a timidez e o amor-próprio, de uma época em que ainda não era costume sorrir tolamente para as câmeras, suas roupas parecendo amarfanhadas ou de tamanho diferente do requerido. Há muitas cenas de Carnaval de rua, e nos perguntamos se o tema foi muito documentado ou o diretor preferiu aquelas imagens, como se assim ressaltasse a alienação popular em face dos movimentos que agitavam, nas altas instâncias, a política.
O que distingue a ditadura do Estado Novo é configurar uma expressão quase pura de cesarismo, ou bonapartismo. São aquelas situações em que, após seguidas lutas entre forças que não conseguem se impor umas às outras, o poder é capturado ou antes delegado por exaustão a um líder autoritário, que se propõe a governar acima das partes e às vezes parece de fato pairar sobre elas.
Dada a fraqueza da sociedade civil, ainda mais débil naquela época do que hoje, não foi difícil para um governante astuto usar o poder em que já estava bem instalado desde 30 para manobrar seus adversários em meio ao pretexto de três levantes armados —liberal-oligárquico (32), comunista (35) e integralista (38)— até empalmar a ditadura plena em 37.
Era uma época em que a política estava militarizada em grande parte do mundo, em particular no Brasil, onde os militares exerceram poder de veto e tutela de 1930 a 1964 e se arvoraram a governar diretamente dessa data a 1985.
A própria intromissão prolongada dos militares pode ser vista como invasão do vazio deixado pela debilidade da sociedade civil, submetida às tremendas trações ideológicas do fascismo e do comunismo. Getúlio foi sustentado e depois deposto pelos militares.
Como o julgamento de Lula está na ordem do dia, o espectador do filme de Eduardo Escorel pode ser tentado a cogitar paralelos.
Dois políticos pragmáticos, inclinados mais à negociação do que ao confronto, sustentados por uma popularidade atribuída às medidas sociais adotadas quando no poder (no caso de Getúlio, direitos; no de Lula, bônus e créditos), combatidos por forças reacionárias que conseguem romper as regras ou forçá-las de modo a inviabilizar o governo de um (Getúlio) e bloquear a presumível volta do outro (Lula).
Mas as diferenças são maiores que as recorrências, a começar que Getúlio exerceu impacto muito maior sobre um Estado ainda em formação, tendo governado, aliás, durante mais que o dobro do tempo de Lula.
É sugestivo que Getúlio jamais tenha sido acusado de corrupção, nem mesmo pelos adversários mais implacáveis, embora ela grassasse a seu redor. E que Lula tenha se mantido nos limites de um histórico impecável como líder democrático. Ambos sinais de uma sociedade hoje, apesar de tudo, mais atuante, e de um Estado menos autossuficiente.
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