Otavio Frias Filho

Diretor de Redação da Folha de 1984 a 2018, autor de “Queda Livre” e “Cinco Peças e Uma Farsa”.

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Otavio Frias Filho

Um profeta na Terra de Santa Cruz

Mangabeira Unger entre a originalidade audaciosa e o lugar-comum

​O filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger está lançando um novo livro, "Depois do Colonialismo Mental - Repensar e Reorganizar o Brasil" (Autonomia Literária). Novo livro em termos, pois se a segunda parte do volume é composta de artigos publicados na imprensa, principalmente neste jornal, a primeira é um ensaio em que o autor burila, mais uma vez, as ideias que o inspiram desde a segunda metade dos anos 1970.

Os escritos de Mangabeira, pela originalidade audaciosa, deveriam interessar todo brasileiro preocupado com o país.

Roberto Mangabeira Unger, durante cerimônia de posse do cargo de ministro-chefe da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF)
Roberto Mangabeira Unger, durante cerimônia de posse do cargo de ministro-chefe da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF) - Sérgio Lima - 19.jun.2007/Folhapress

Ele descarta tanto as políticas autoritárias do marxismo, que falharam no teste da prática, quanto as vertentes autonomistas da extrema-esquerda. Além de repelir também o pensamento de direita, por ser retrógrado e mesquinho, ele é ainda um crítico acerbo das combinações de liberalismo e social-democracia que estiveram em voga nas últimas décadas, por se limitarem a humanizar aspectos do capitalismo, em vez de "reinventá-lo".

As origens de um pensamento assim peculiar e intransigente estão em duas fontes. De um lado, o "progressismo" que vigorou nos Estados Unidos da primeira parte do século 20, sobretudo nos governos reformistas dos dois Roosevelt, que canalizaram a pressão popular crescente no rumo do estímulo ao pequeno negócio e da regulamentação dos oligopólios. De outro, a fé em fórmulas redentoras que se encontra tanto no puritanismo americano como no catolicismo messiânico brasileiro.

Mangabeira começa onde começaram tantos de seus antecessores, pelo descompasso entre as potencialidades incalculáveis do Brasil, dadas por sua unidade, vitalidade e sincretismo, e o pouco que se obteve até agora em termos de realizações emancipatórias.

Seu texto vem embalado numa fulgurante retórica baiana que pode iludir. Suas ideias sobre educação, por exemplo, não estão longe do que virou lugar-comum no tema, ou seja, máxima prioridade a um ensino que capacite as inteligências para resolver problemas concretos e desenvolva sua visão crítica do mundo.

Quais os estratos a serem mobilizados por esse reformismo radical? São os emergentes, com sua paixão por subir na vida, são os batalhadores, que tendem a seguir aqueles, são as massas menos qualificadas, que têm pouco a perder.

Aqui sempre caiu a linha divisória entre nosso autor e os petistas, que ele via como representantes da aristocracia operária de São Paulo —mas isso até ceder ao canto de sereia de Lula, dois anos após ter clamado pelo impeachment deste, para assumir em 2007 uma etérea Secretaria de Planejamento de Longo Prazo (que Reinaldo Azevedo apelidou inesquecivelmente de "Se Alopra").

Até mesmo o mecanismo de freios e contrapesos, considerado em ciência política a maior contribuição dos redatores da Constituição americana à democracia, é rejeitado por Mangabeira, que nele vê uma fórmula conservadora de desacelerar e esfriar a política, quando esta deveria ser conduzida pela paixão sob as rédeas da razão. O autor propõe uma mistura de democracia representativa e direta, com recurso frequente a plebiscitos e "recalls" de governantes.

Os social-democratas brasileiros, para voltar por um momento a eles, são imitadores acanhados, que desejam fazer do Brasil uma "Suécia tropical".

Mas o que haveria de tão errado nisso? Ora, diz Mangabeira, a tarefa mundial do Brasil é mostrar que é possível associar "pujança e ternura". Somente isso poderia traduzir nossa verdadeira grandeza, definida como disposição para nos colocarmos em pé e irmos além de nossas próprias possibilidades. É certamente esse aspecto da utopia mangabeirana que sensibiliza artistas ambiciosos, como Caetano Veloso, autor do prefácio.

E, de fato, o que é apresentado como ambição sagrada de todo um povo talvez se reduza a uma dimensão estética que mesmeriza profetas. Será que a ambição das pessoas comuns, normais, não consiste apenas em ter uma profissão decente, uma remuneração condigna, uma vida familiar em segurança, algum lazer de vez em quando? Será que vale a pena passar pelos horrores da revolução, da "política de alta energia", para poder ostentar um título de originalidade? Isso é existencial ou frívolo?

Sobretudo num pensador que se diz dedicado à prática e à experimentação, sua vida não se pode dissociar de suas ideias. Mangabeira se mantém numa sinecura na Universidade Harvard para, a cada eleição, fazer uma incursão pela Terra de Santa Cruz. Antes assessorava líderes voluntaristas, tumultuários, como Brizola e Ciro Gomes. Depois passou a tentar candidatura própria pelos partidos mais implausíveis, e são também inesquecíveis as caras e poses de Napoleão de hospício que ele fazia para as câmeras. Talvez se trate, afinal, mais da grandeza de Mangabeira do que do Brasil.

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