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Julio Wiziack é editor do Painel S.A. e está na Folha desde 2007, cobrindo bastidores de economia e negócios. Foi repórter especial e venceu os prêmios Esso e Embratel, em 2012

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Empresas precisam ser radicais para enfrentar racismo, diz dono da New Vegas

Para Ian Black, fundador da agência de publicidade, programas ainda são incipientes

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São Paulo

Filho de um taxista negro e uma costureira branca, Ian Black cresceu nas franjas da região metropolitana de São Paulo e começou a se dar conta da engrenagem que alimenta o racismo no Brasil quando sua ascensão social o levou aos lugares onde os negros raramente são vistos.

Dono da agência de publicidade New Vegas, que hoje tem o Bradesco e a Procter & Gamble como principais clientes, ele acha que os esforços das empresas brasileiras para combater o problema ainda são incipientes e defende programas mais ambiciosos para aumentar a diversidade no ambiente de trabalho e promover transformações mais significativas na sociedade.

O empresário Ian Black, fundador e sócio da agência de publicidade New Vegas, em sua casa em São Paulo. - Karime Xavier/Folhapress

Como foi sua formação? Nasci numa família inter-racial, com pai negro e mãe branca. Raça não era um assunto, e brincávamos com as diferenças de cor de pele entre nós. Minha irmã é branca e meu irmão é mais claro do que eu.

Cresci na periferia de São Paulo, em casas humildes, em ruas de terra. Dormíamos todos no mesmo quarto. Mas meu pai não bebia, nem tinha outros vícios. Meus pais não brigavam. Não havia violência em casa, e mesmo na rua ela não era presente como hoje.

Meu pai sempre incentivou nossa curiosidade pelo mundo. Minha irmã foi a primeira a ir para a escola, e minha mãe a encarregou de ensinar os irmãos a ler e escrever antes que chegasse nossa vez.

Tive desde cedo a ambição de ver as coisas além do lugar em que vivia. Mergulhei nos filmes, na televisão e nos videogames. Com o surgimento da internet e dos primeiros blogs, ampliei minhas conexões e assim cheguei à publicidade, num momento em que as agências buscavam gente que conhecesse esse universo.

Em que momento o racismo começou a preocupá-lo? Na infância e na adolescência, tinha primos brancos e meus amigos eram brancos. Cresci consumindo cultura pop branca. Quando a internet começou, não havia tantas fotos, e o racismo também não era um grande problema ali.

Quando comecei na publicidade, havia nas agências muitos jovens e pessoas humildes com quem eu compartilhava referências. Foram raras as situações em que me senti de alguma forma excluído.

Comecei a perceber mais essas coisas depois de virar empresário. Uma vez cheguei cedo para uma reunião numa entidade do setor e o primeiro cara do escritório que me viu perguntou se eu tinha trazido as notas fiscais. Achava que era o motoboy. Mas eu já tinha poder para reagir, expor a situação e obter reparação.

No aeroporto, no bairro em que vivo hoje, muitos pensam que sou músico, artista, ou gringo. Sou dono de uma agência que, embora pequena, tem posição relevante no mercado e me garante uma respeitabilidade que pessoas negras normalmente não têm no Brasil. E muita gente ainda tem dificuldade ao ver uma pessoa como eu nesse lugar.

Acha que a sociedade brasileira está mais consciente do problema? Os movimentos negros têm feito um trabalho incrível para estimular o debate, mas ele é longo e difícil. No Brasil, investiu-se por muito tempo na ideia de que o país não era racista, e isso alimentou uma ignorância gigantesca sobre as questões raciais.

Nossas empresas foram construídas num ambiente em que para muita gente o racismo simplesmente não existia. A inexistência de pessoas negras nesses espaços não era vista como um problema. Essa normalização é a maior violência do racismo no Brasil.

Agora estamos numa etapa de conscientização das pessoas e das instituições sobre o racismo na sociedade que construímos e as estruturas que alimentam as nossas desigualdades. Nesse aspecto, todo mundo, inclusive as empresas, ainda está se alfabetizando.

Há movimentos ativos, pessoas se articulando nas redes sociais e tudo mais. Mas ainda estamos longe de uma mobilização com força para influir de forma decisiva nas instituições e nas políticas públicas.

O que acha dos esforços que as empresas têm feito?  As marcas olham muito o que acontece lá fora e partem daí. Percebem que é impossível ficar alheio ao racismo e sabem que precisam fazer algo, mas ainda são iletradas. Fazem o que podem, com a perspectiva de quem nunca pensou que isso fosse um problema.

Todas as iniciativas nessa direção devem ser louvadas, mas elas têm que ser compreendidas como algo incipiente e cobradas por isso. É importante ter mais negros nos comerciais, programas de trainees para negros e tudo mais, mas o objetivo maior deve ser outro.

A grande transformação terá ocorrido quando a presença dos nossos corpos nesses espaços não for mais notada como algo excepcional, ou como um problema a ser administrado, mas como algo normal. As empresas precisam adotar posturas radicais para alcançar esse objetivo.

Políticas afirmativas na educação e no mercado de trabalho podem contribuir?  Sim. O pior do nosso racismo não está no sujeito que xinga uma pessoa negra na rua, mas na estrutura invisível que as impede de entrar nos lugares em que hoje os brancos são maioria. Basta olhar o perfil das universidades preferidas no recrutamento das empresas. Só tem branco nessas escolas.

E não basta incluir pessoas negras nesses ambientes. É preciso que elas se apoderem dos recursos disponíveis, se apropriem desses lugares e criem novas relações a partir de sua perspectiva. Só assim conseguiremos viver numa sociedade melhor.

Ian Black, 42

Fundador e principal executivo da agência de publicidade New Vegas, criada em 2011. Abandonou quatro faculdades diferentes antes de concluir o primeiro semestre e começou na propaganda em 2007. Deixou de usar o nome de batismo, José Câmara, quando trabalhava numa empresa de telemarketing em que havia um homônimo.

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