Certa vez, em uma formação sobre crises humanitárias e estratégias de resposta, ouvi de uma gestora da ONG Médicos sem Fronteiras que fortalecer movimentos e equipamentos sociais instalados e atuantes no território era o primeiro passo para trazer possíveis soluções a esses conflitos. De forma estratégica e alinhada, esses atores sociais poderiam atuar juntos nas necessidades em campo.
Ela disse ainda que movimentos sociais ou religiosos que chegam no território querendo aplicar sua metodologia de forma direta e impositiva —trazendo doações indevidas e com distribuição indiscriminada— atrapalham mais do que ajudam.
Em outra ocasião, também em um curso, agora em direitos humanos e responsabilidade social, ouvi algo parecido de Mariana Serra, experiente líder social em territórios de crises humanitárias, e gestora da ONG Vollunteer Vacation.
Ela disse que o Haiti tinha virado um grande depósito de roupas por causa da absurda doação internacional. Os países acreditavam que itens de vestuário eram a maior necessidade do povo, enquanto ONGs locais não tinham recurso para alimentar os que estavam abrigados nos equipamentos sociais.
O ser humano se compadece das causas sociais, e principalmente das que são veiculadas na mídia em formato sensacionalista. A trama piora se a causa tiver nome, sobrenome e CPF. Vão além de se compadecer com a situação: a paternalizam, endeusam, tomam a causa para si.
Tornar a causa individual é se esquecer de que a causa de uma pessoa, sem a menor dúvida, é a causa de toda uma minoria. E quando digo minoria não estou dizendo em números, obviamente, mas me refiro ao termo usado para categorizar grupos com características sociais que os colocam em vulnerabilidade e em pé de desigualdade social.
Quando essa causa é individualizada, independente de ser para uma boa ou má referência, essa mesma causa, em seu formato social e coletivo, é esvaziada.
Seja o caso de espancamento de um indivíduo negro no Carrefour —que o senso comum taxava como "caso isolado"—, seja pela comoção nacional com dona Janete, idosa que apareceu chorando com fome na TV, no dia 23 de junho.
O caso isolado sempre faz parte de um todo. E nesse sentido está a solução.
O ser humano tem empatia, quer doar. Mas movido pelo sentimento (às vezes o de "salvador"), doa errado. Doa para uma pessoa, que acumula recebimentos de muitos dígitos, enquanto causas legítimas, com diversas pessoas na situação de privação de direitos, são esvaziadas, esquecidas e enfraquecidas.
A verdadeira transformação social está na união de todos os setores da sociedade. O Estado, garantidor legítimo de direitos, empresas e mercado financeiro, e a sociedade civil organizada —e não 'desorganizada', com cada um lutando por uma causa individual, um CPF, no intuito do "salvador".
É preciso unir forças, fortalecer causas sociais por meio de ONGs, e movimentos que têm sua atuação legitimada tanto na temática quanto no território.
Deles sairão metodologias próprias para enfrentar o desafio social, a logística testada e aprovada na entrega de doações e afins, e até mesmo a interlocução com atores do território, seja a parte pública, seja a rede de usuários.
O terceiro setor cria soluções sociais há décadas, como um laboratório que testa e aprova tecnologias sociais de real transformação para a população em vulnerabilidade.
Só falta agora a sociedade civil, em cada CPF que mantém, acreditar e investir socialmente, para que a mudança não seja B2B, mas sistêmica e sustentável.
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