Patrícia Campos Mello

Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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Patrícia Campos Mello

Guerra entre EUA e China está por trás do colapso da OMC

Para o governo Trump, entidade passa a mão na cabeça de Pequim

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Não se engane –por trás da paralisação da Organização Mundial do Comércio (OMC), está, mais uma vez, a guerra tecnológica e comercial entre Estados Unidos e China.

 O governo Trump vê a OMC como um entrave às políticas comerciais soberanas dos EUA e como uma organização que passa a mão na cabeça da China, enquanto o gigante asiático mantém práticas que violam as regras do livre mercado.

Nos últimos dois anos, o governo americano bloqueou a nomeação de juízes para o órgão de apelação, que funciona como um tribunal de recursos para os países que perdem disputas comerciais nos painéis da OMC. 

Bandeiras dos Estados Unidos e da China são exibidas em um hotel em Pequim
Bandeiras dos Estados Unidos e da China são exibidas em um hotel em Pequim - Greg Baker - 14.mai.19/AFP

Com isso, terminou nesta terça-feira (10) o mandato de dois dos únicos três juízes remanescentes no órgão (originalmente são sete), o que inviabiliza o julgamento de recursos. Os dois juízes com mandato expirado concordaram apenas em concluir os julgamentos que já estão em andamento. 

Em discurso no conselho geral da organização, o embaixador americano na OMC, Dennis Shea, deixou claro porque os EUA tentam reformar —ou paralisar— o sistema multilateral de comércio, muito embora ele não tenha se referido diretamente à China.

"As distorções causadas por práticas que contrariam as regras de livre mercado ameaçam nosso objetivo de ter um sistema de comércio livre, justo e vantajoso para todos”, disse Shea, na segunda-feira (9), segundo texto divulgado pela missão e relatado pelo site Inside Trade. “Práticas por meio das quais governos intervêm para distorcer competição e levar a certos resultados para beneficiar determinados atores domésticos minam a confiança do público na OMC.”

 Ainda segundo o diplomata americano, ao entrar na OMC, um país se compromete a fazer “esforços para adotar políticas de livre mercado.”

A China entendeu o recado, e o embaixador chinês na OMC, Zhang Xiangchen, rebateu, afirmando que a entidade deveria respeitar “modelos econômicos divergentes”, como o da China.

“Nós ouvimos falar tantas vezes em práticas que violam o livre mercado, mas, afinal, que práticas são essas? Para mim, o que viola o livre mercado é barrar comércio de produtos e empresas estrangeiras, sob o disfarce de defesa da segurança nacional, sem nenhuma prova substantiva”, disse.

O chinês também não mencionou os EUA, mas referia-se obviamente às tarifas impostas pelo governo Trump sobre importação de aço e alumínio de vários países, entre eles o Brasil.

“Nós também ouvimos falar várias vezes sobre distorções do comércio, o que seria isso, exatamente? Para mim, é o desrespeito flagrante às regras da OMC com a imposição unilateral de tarifas”, afirmou, referindo-se indiretamente às sobretaxas que os EUA impuseram sobre cerca de US$ 360 bilhões em produtos chineses (que a China, por sua vez, retaliou com tarifas sobre US$ 100 bilhões em produtos americanos).

As principais queixas dos EUA em relação à OMC se referem à autodeclaração dos países em desenvolvimento, que dá direito ao chamado tratamento especial e diferenciado, e à incapacidade ou demora da organização para condenar os subsídios concedidos pela China a suas empresas.

Os países que se declaram “em desenvolvimento” na OMC têm direito a tratamento especial e diferenciado, que dá maiores prazos para cumprir acordos e uma série de flexibilidade nas negociações comerciais.

Os EUA vêm pressionando por uma reforma na OMC que acabe com a possibilidade de certos países se autodeclararem. Nações como o Qatar, que têm renda per capita de US$ 61 mil, autodeclaram-se em desenvolvimento e participam das negociações como “café com leite” se quiserem.

Os EUA querem critérios para diferenciação e acabar com essa autodeclaração. Propõem a exclusão de países-membros da OCDE, ou em processo de adesão, daqueles classificados como “países de alta renda” pelo Banco Mundial, dos integrantes do G20 e dos que respondem por mais de 0,5% do comércio mundial de bens.

O Brasil e a Coreia do Sul, sob pressão dos EUA, já concordaram em não requisitar o tratamento especial e diferenciado em negociações daqui para a frente.

Os americanos afirmam que a autodeclaração vai levar a OMC à “irrelevância institucional” e que economias que já cresceram se aproveitam disso para evitar assumir obrigações —referindo-se principalmente a China, atualmente a segunda maior economia do mundo, e a Índia, a sexta. Os dois países se opõem veementemente à reforma proposta pelos americanos.

E o governo Trump resolveu agir sozinho, mais uma vez: o presidente determinou que o USTR não trate como “nação em desenvolvimento” certos países que eles não consideram merecer tal status. Além disso, o órgão irá publicar uma lista em seu site com todos os países que, segundo os EUA, injustamente reivindicam o tratamento especial e diferenciado.

O outro alvo dos EUA é o órgão de apelação, que foi paralisado esta semana. Na visão dos EUA, o órgão praticava ativismo judicial, extrapolando a função de apenas cumprir as regras da OMC, e demorava muito para chegar a decisões.

De fato, segundo o relatório anual da OMC de 2018, em média, um painel demora 859 dias para chegar a uma decisão sobre um caso, e depois mais 395 dias nas apelações –um total de 1.267 dias, ou três anos e meio.

De forma geral, o governo Trump afirma que a OMC não é justa, porque está poupando a China. Em vez de punir os subsídios do governo chinês a suas indústrias, a OMC condena as medidas antidumping e salvaguardas americanas sobre esses produtos.

 “A magnitude das políticas da China para desenvolver sua economia, subsidiar, criar campeões nacionais, forçar transferência de tecnologia e distorcer mercados na China e ao redor do mundo são uma ameaça sem precedentes ao sistema de comércio mundial”, disse Lighthizer em uma palestra no think thank CSIS em 2017.

“A OMC e seu antecessor, o GATT, não foram desenhados para administrar de forma eficiente mercantilismo nessa escala. Precisamos achar outras maneiras para defender nossas empresas, nossos trabalhadores, nossos agricultores, e, na verdade, nosso sistema econômico.”

É verdade que a OMC, mesmo após todos esses anos, ainda não aprendeu a lidar com o capitalismo estatal praticado pela China.

Quando o país entrou na organização, em 2001, havia a expectativa de que fosse acelerar o ritmo de reformas e a abertura da economia. Alguns dos pontos a serem resolvidos eram a exigência de fazer joint-ventures com empresas chinesas para acessar o mercado da China, o subsídio e crédito barato para setores prioritários —o que acaba distorcendo os preços dos produtos no mercado mundial (caso do aço)— e a exigência de transferência de tecnologia.

Várias concessões e condições especiais foram concedidos à China, na esperança de isso que fosse possibilitar a abertura do pais para o mundo.

Mas, na realidade, o gigante asiático continua muito fechado em vários aspectos. E, segundo os EUA, a China usa instrumentos que dão a ela vantagem desleal na competição comercial.

A China argumenta que todos os membros da OMC têm sistemas econômicos “específicos” e que ninguém deveria deter o poder de dizer o que é uma economia de mercado e o que não é.

“O primeiro e principal objetivo da reforma da OMC deveria ser a luta contra o protecionismo e a manutenção dos valores essenciais da organização; não deveríamos desperdiçar nosso tempo apontando bodes expiatórios, fazendo populismo comercial ou construindo cercas”, disse o embaixador chinês na segunda-feira (9).

Será difícil chegar a uma trégua entre China e EUA no curto prazo.

E, enquanto isso, a economia mundial é que perde: segundo relatório divulgado nesta quinta-feira (12) pela OMC, foram implementadas 102 novas medidas de restrição de comércio entre outubro de 2018 e outubro de 2019 –em bom português, medidas protecionistas.

Um total de US$ 746,9 bilhões em produtos exportados são atingidos por essas medidas –aumento de 27% em relação ao período anterior. 

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