Paula Cesarino Costa

Jornalista, foi secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. Foi ombudsman da Folha de abril de 2016 até maio de 2019.

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Paula Cesarino Costa

Distanciamento histórico

Reportagem antiga foi postada no Twitter da Folha, sem indicação de que era da seção Há 50 anos

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“Quase caí da cama”, me escreveu uma leitora ao comentar a manchete da Folha que acabara de ler no Twitter no meio da madrugada: “Protestos levam cúpula militar a avaliar adoção de estado de sítio”. A postagem, publicada na rede a 1h43 da terça-feira, relembrava fato acontecido em 3 de abril de 1968. Fazia parte da seção "Há 50 anos", que a Folha publica diariamente. O tuíte do jornal, no entanto, não tinha nenhuma indicação desse detalhe temporal fundamental.

Para piorar o quadro, às 16h39 do mesmo dia 3, o comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas, escreveu, na mesma rede social, que a força compartilhava “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Nos tempos conflagrados em que o país vive, todo cuidado é pouco. O leitor Adriano Abreu reclamou: “A matéria aparenta ser atual e falar sobre um acontecimento atual, principalmente no contexto recente de intervenção militar no Rio, protestos a favor e contra a prisão do ex-presidente Lula e incertezas sobre as eleições deste ano”. Classificou como “imprudente” a forma como o jornal atuou. “Qualquer coisa hoje, nas redes sociais, é dada como verdade, sem mesmo as pessoas terem lido. Notícias que se encaixam no contexto em que vivemos viralizam e têm maior poder de convencimento. Divulgar matéria de 50 anos atrás, sem indicar explicitamente do que se trata, é uma imprudência enorme. A Folha espalhou fake news e desinformação.”

 
Mais leitores manifestaram indignação: “beira a irresponsabilidade”, “chamada que induza erro na leitura”, “canalhice”, “caça-clique para desavisados”, rotularam. 

O editor de mídias sociais da Folha, Ygor Salles, reconheceu que os leitores têm razão na reclamação e que o título não deixava claro que se tratava de texto sobre evento histórico. Explicou que “o efeito é ainda maior no Twitter, onde inexistem os elementos gráficos que permitam sinalizar a diferença”.

Além de assumir prontamente o erro, o jornal decidiu alterar a prática que adotava até então. Todos os textos originados no Banco de Dados, como os da seção "Há 50 anos" e os posts do blog acervo Folha, passaram a ter sempre o ano a que se referem já no título. Salles fez questão de ressaltar que foi erro de procedimento. “Nada tem a ver com algum viés político”.

DIMENSÃO HISTÓRICA

O jornalismo tem papel fundamental na construção da história e da memória social. Sem o registro imediato do jornalista, o trabalho do historiador torna-se mais difícil e mais impreciso. O registro do cotidiano realizado pela imprensa é elemento essencial para a revisão crítica dos acontecimentos. 

O país tem sido pródigo em acontecimentos políticos que merecem ser chamados de históricos. Por vezes, a repetição de fatos que separadamente seriam interpretados como espetaculares provoca saturação no leitor. Por vezes, causa também efeitos anestésicos nos procedimentos jornalísticos. 

Não é a primeira vez que aponto aqui fragilidades da Folha ao minimizar o caráter histórico dos fatos ou não oferecer em sua edição elementos dessa dimensão histórica.

Foi o que ocorreu na edição de sexta-feira, 6, dia seguinte à decretação da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da silva. A Folha acertou ao oferecer ao leitor um olhar para o futuro — publicando texto analítico sobre as perspectivas da eleição deste ano. Falhou, no entanto, no aspecto histórico, ao não trazer informações obrigatórias de contextualização. O jornal abriu mão de fazer um mergulho nos detalhes que levaram à crise política inédita causada pela prisão iminente de um ex-presidente da República, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

Faltou o básico: não lembrou a trajetória política de Lula nem resumiu o caminho da denúncia até a sua prisão. Não contou os casos de outros presidentes presos por razões distintas da atual. Perdeu a chance de ser didático e de fazer uma revisão crítica necessária dos acontecimentos recentes. 

O olhar para o passado serve tanto para entender o presente como para ajudar a dimensionar as notícias, projetando o significado que terão no futuro. 

Jornalismo investigativo não é só denúncias e escândalos. Tem relação com o jornalismo interpretativo ou analítico. Ao buscar causas e origens dos fatos, coloca luzes sobre o passado, dá base para o entendimento do presente e aponta os temas relevantes para o futuro. Fazer essa articulação é tarefa nobre, muito acima da capacidade dos buscadores da internet e de seus algoritmos.

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