Paula Cesarino Costa

Jornalista, foi secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. Foi ombudsman da Folha de abril de 2016 até maio de 2019.

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Paula Cesarino Costa
Descrição de chapéu joão gilberto

Esperando João na rua errada

Sem transparência nem cuidado com a credibilidade, reação da Folha é lenta e constrangida

Raras reportagens são tão cultuadas entre jornalistas quanto “Frank Sinatra está resfriado”, do escritor americano Gay Talese. Publicado em abril de 1966 na revista “Esquire”, o texto narra o fracasso do repórter em entrevistar o maior cantor norte-americano, acometido de um arremedo de gripe. E dessa forma traça perfil magistral do cantor.

João Gilberto pode ser considerado o Frank Sinatra brasileiro —e quase todo jornalista gostaria de ser Gay Talese. Daí, volta e meia “Frank has a cold” serve de inspiração para mais uma entrevista fracassada (não) envolvendo de alguma maneira João Gilberto. Em abril, foi a vez da Folha de cair nessa esparrela.

A ideia de falar de João Gilberto a partir de vizinhos e comerciantes do bairro onde mora não era das mais criativas. Em 2008, o jornal O Estado de S. Paulo já havia feito a mesma pauta. Em 2011, o site IG também.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira —87 anos a serem completados em junho— talvez seja o mais importante artista brasileiro —se mensurado seu talento pela influência entre seus pares, pelo reconhecimento internacional ou pela obra aclamadíssima. Nascido em Juazeiro (BA), em 1931, mora no Rio há quase 40 anos.

Em 9 de abril, sob o título “À espreita de João”, o colunista Alvaro Costa e Silva escreveu crônica-reportagem na Folha, após passar um dia nas cercanias de um edifício da rua General Urquiza, no Leblon, onde, segundo o texto, o cantor estaria morando.

O pretexto para a reportagem era a possível entrada à força no apartamento dele. Bebel, sua filha, movera ação de interdição, e a Justiça autorizara o arrombamento da porta para que ele fosse citado.

O texto até recebia elogios nas redes sociais, quando um jornalista experiente postou que o Rio inteiro sabia que João Gilberto não morava na General Urquiza, mas, sim, na Carlos Góis, distante algumas quadras. Houve um espirituoso que resumiu a encrenca, citando texto de Samuel Beckett sobre um personagem que nunca chega: “A Folha esperou Godot na rua errada”.

João Gilberto nunca teve apartamento próprio, dizem amigos. Morou em poucos endereços no Leblon. Há quem assegure que um deles era na rua General Urquiza, mas o mais constante e recente foi na Carlos Góis.

Apontei em crítica interna o erro em relação ao endereço do cantor, ressaltando que o equívoco tornava todo o texto sem sentido. Pedi transparência.

A Folha demorou 21 dias para explicar-se. E o fez de modo oblíquo e com constrangimento. Em 30 de abril, o jornal publicou correção e, em título na capa da Ilustrada, anunciava: “Exílio na Gávea. Dívidas e processos levam ídolo da bossa nova a deixar Leblon e morar de favor em outro local”.

O texto do Erramos dizia: “Diferentemente do que informava o texto ‘À espreita de João’, a atual residência de João Gilberto não fica na rua General Urquiza, e sim na Gávea, no Rio. Leia mais na página C1 desta edição”. Impreciso, não identificava a rua General Urquiza no Leblon, ignorava a vigília inútil do jornal e supunha que o leitor sabia que Gávea é um outro bairro carioca.

Diz o Manual da Redação do jornal em sua página 98: “A Folha retifica com presteza e sem eufemismos erros constatados (...) Erros de gravidade excepcionais podem ser retificados também na capa ou em reportagens internas”.

A reportagem provocada pelo erro deveria ser exemplo de pesquisa, contextualização, apuração e texto.

Além de nem citar a reportagem de 9 de abril, que a originou, pouco recupera das mudanças de endereço do músico, não dá detalhes sobre esse apartamento da rua General Urquiza e, pior, coloca no condicional a informação principal sobre a nova morada do cantor, sem sustentar o título.

Pior que essa informação sobre o suposto atual local de moradia já havia sido divulgada por Lauro Jardim, de O Globo, em 17 de abril, 13 dias antes da reportagem da Folha.

O editor de Cultura, Matheus Magenta, reconhece as falhas: “Houve uma série de erros de procedimentos no caso, agravados pelo parco acesso a informações confiáveis. Por exemplo, familiares divergem sobre onde ele morou, quando e com quem vivia. Vizinhos, funcionários e amigos tampouco elucidam essas dúvidas. A fonte primária está reclusa há anos. Assim, a Ilustrada deveria ter sido muito mais cuidadosa com a apuração, o didatismo e a rechecagem desses dados, a despeito de pressões como furos da concorrência”.

O caso pouco mobilizou leitores. Talvez muitos considerem um exagero ocupar este espaço para tratar de onde mora João Gilberto. Não se trata, no entanto, somente disso.

É um exemplo da dificuldade do jornal de assumir erros, de corrigi-los de imediato e de forma clara, sem descuidar do maior patrimônio que possui, sua credibilidade. Jornalistas não lidam bem com fracassos.

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