Paula Cesarino Costa

Jornalista, foi secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. Foi ombudsman da Folha de abril de 2016 até maio de 2019.

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Paula Cesarino Costa
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

A consciência crítica

Diretor da Folha acreditava que a crítica que funciona é a que incomoda

Carvall

As últimas 10.563 edições da Folha estiveram sob o crivo de um profissional pago para criticar o jornal. Sem a determinação e o destemor de Otavio Frias Filho (tomando emprestadas as palavras de Caio Tulio Costa), o primeiro ombudsman da imprensa brasileira teria durado somente alguns dias. De 24 de setembro de 1989 até hoje, foram 1.384 colunas publicadas por 12 diferentes ombudsmans.

De lá para cá, vários jornais do mundo extinguiram o cargo por motivos diversos.

A criação e a permanência do ombudsman são resultado da insatisfação diária de Otavio com a qualidade do jornal e da convicção de que, por ser o jornalismo "reino da precariedade seja pela pressa, seja pelas limitações intelectuais que todos nós jornalistas temos", é preciso melhorar e fazer autocrítica.

 

Se o exercício diário da autocrítica não é confortável para os jornalistas, não era menos sofrido para o próprio diretor de Redação. Desde a criação do posto, havia certa incredulidade sobre a eficácia, a necessidade e a utilidade de um ombudsman. Muitos duvidavam da liberdade de crítica do profissional, apontando maior pendor à autopromoção da Folha do que real atitude de vigilância profissional.

Em entrevista a Alberto Dines —um precursor dos ombudsmans ao manter também na Folha, entre 1975 e 1977, uma coluna de crítica chamada Jornal dos Jornais— Otavio disse que na Folha o ombudsman era "pra valer". E confessou: "Eu meço pela minha irritação no domingo. Quanto mais injustiçada eu sinto que a Folha foi pelo ombudsman, mais sinal de que o ombudsman está funcionando. Porque a crítica que funciona é a que incomoda, é a que perturba, senão não é crítica propriamente."

Na entrevista, concedida em 2013 por ocasião dos 15 anos do Observatório da Imprensa, ele resumiu: "Para nós tem sido uma experiência excelente, muito útil. Tenho a impressão que é do cerne da evitação de abuso de poder o mecanismo de freios e contrapesos. No meu entendimento, o ombudsman dentro de um jornal, de uma televisão, ou de uma revista, funciona como esse mecanismo. O ombudsman é uma consciência crítica. Chama atenção para aspectos que estão negligenciados. Aponta erros que não foram percebidos. Vocaliza o ponto de vista de leitores ou de fontes que se sentiram indevidamente prejudicados pelo noticiário. Um mecanismo que se incorporou à cultura do jornal."

Reconhecia que, por não ser ciência exata, a avaliação jornalística possui forte grau de subjetividade. No entanto, por quase 29 anos, manteve o compromisso de dar liberdade e independência aos ocupantes do cargo.

Busquei levantar com aqueles que me antecederam episódios que pudessem iluminar a relação do diretor com a instituição do ombudsman. Em geral, os contatos eram raros, para observações pontuais, sempre reiterando que mudar ou não a avaliação era prerrogativa do profissional.

Em alguns momentos, Otavio manifestou sua divergência em relação a determinada crítica, mas era enfático em afirmar que essa discordância não impedia que considerasse "salutar e até desejável" que as visões da direção e do ombudsman fossem diferentes.

"Não importa tanto se justa ou injusta, o essencial é que o jornal seja submetido sistematicamente a uma crítica institucionalizada", argumentava.

Convivi com Otavio quase diariamente, por 31 anos, testemunhando seu talento, inteligência, argúcia e bom humor.

Um dia apareceu em uma roda de amigos, na praia, com camiseta que reproduzia a primeira página do jornal Chicago Daily Tribune com a manchete "Dewey defeats Truman". É um dos mais célebres erros da história do jornalismo.

O enunciado "Dewey Derrota Truman" fora publicado em 3 de novembro de 1948. Os editores elaboraram a capa com o resultado da eleição presidencial dos EUA antes que muitos estados contabilizassem seus votos. Fiaram-se nas pesquisas que apontavam a vitória do candidato republicano (Dewey) sobre o democrata (Truman). Depois de reconhecido como vitorioso, Truman posou sorridente com o exemplar do Chicago Daily Tribune nas mãos.

O ato de vestir a camiseta da manchete errada, numa metapiada, combinava por demais com Otavio e seu espírito crítico —e divertido— e sua visão cética —mas curiosa— do mundo e, em especial, do jornalismo.

Dizia sempre que gostaria de um dia se libertar do jornalismo. Enquanto não o fazia, dedicava-se ao ofício com afinco, "por uma espécie de ética pessoal de fazer o que está fazendo sempre bem feito".

As falhas de um jornal são expostas todo dia. Sua grandeza, no entanto, é construída de modo lento, metódico e perseverante. A ausência de Otavio obriga cada um dos profissionais da Folha a manter afiada a consciência crítica e a capacidade de autoquestionar-se.

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