Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Paul Krugman

Última saída na estrada para a autocracia

Há uma chance para recuperar os valores democráticos na eleição de meio de mandado

Não importa o que aconteça na eleição de meio de mandato, as consequências serão feias. Mas ela é no mínimo uma bifurcação na estrada. Se seguirmos um caminho, haverá pelo menos uma chance de redenção política, de recuperar os valores democráticos dos Estados Unidos. Se escolhermos o outro, estaremos na estrada para a autocracia, e sem saída visível. ​

É quase certo que os democratas receberão mais votos que os republicanos, e pesquisas indicam que, na votação para a Câmara dos Deputados, sua margem de vantagem pode chegar a sete pontos percentuais - o que representaria a maior vitória eleitoral da era moderna. Mas a manipulação do traçado de distritos eleitorais e outros fatores distorceram muito a  competição, e mesmo uma vantagem dessa ordem pode não bastar para que o partido ganhe o controle da Câmara. ​

E mesmo que os democratas consigam galgar essa encosta íngreme, quem quer que espere que os republicanos aceitarão o resultado graciosamente não está prestando atenção. Basta lembrar que Donald Trump afirmou - falsamente, é claro - que milhões de imigrantes votaram ilegalmente em uma eleição que ele venceu.

Imagine o que ele dirá se perder, e o que seus partidários farão em resposta à sua reação. E se e quando uma Câmara controlada pelos democratas tentar exercer seus puderes, pode estar certo de que isso não será aceito com tranquilidade, não importa o que diz a constituição. ​

Mas por mais feia que seja a cena caso os democratas vençam, será muito pi ​or se perderem. De fato, não é hipérbole dizer que, caso o Partido Republicano consiga se manter no poder, a eleição da terça-feira pode ser o último pleito mais ou menos decente em nossa história. ​

Basta observar o que vem acontecendo na Geórgia, onde Brian Kemp - o secretário de Estado, republicano, que organiza as eleições - está disputando o governo do estado contra a democrata Stacey Abrams. Em qualquer outra democracia, permitir que um homem supervisione uma eleição na qual ele é candidato seria inconcebível. Mas é assim que são as coisas na Geórgia, e Kemp está abusando ao máximo de seus poderes. ​

Nos últimos anos, ele expurgou milhões de eleitores dos registros eleitorais do estado, sob pretextos dúbios. Ao se ver envolvido em uma disputa eleitoral acirrada apesar desses esforços, tentou excluir ainda mais eleitores, com base em critérios tão espúrios que os tribunais bloquearam suas medidas - por enquanto. Assim, no final de semana anterior à eleição, o gabinete de Kemp lançou um alerta, sem quaisquer provas e sem oferecer informações específicas, de que democratas talvez tivessem tentado invadir o site de registro de eleitores. ​

Um partido político com o mínimo de compromisso para com a democracia e o fair play trataria Kemp como pária. Em lugar disso, ele conta com pleno apoio da direção nacional republicana. ​

E a Geórgia está longe de ser um caso único. Houve tentativas semelhantes, se bem que menos espetaculares, de manipular a votação no Kansas e no Dakota do Norte, onde eleitores que vivem fora desses dois estados foram informados que só poderiam votar pelo correio se preenchessem as cédulas com tinta da cor certa - e em seguida receberam informações conflitantes sobre qual seria essa cor. ​

E quanto às questões em nível federal? O Executivo não controla diretamente o processo eleitoral, mas Trump ainda assim se envolveu em abusos de poder extraordinários, na campanha. Enviou grandes forças militares à fronteira do México, com um custo provável de centenas de milhões de dólares para os contribuintes, em uma tentativa óbvia de exagerar a suposta ameaça de uma pequena e maltrapilha caravana de refugiados que estava a mais de mil quilômetros de nossas fronteiras.  O movimento de tropas claramente não serve ao interesse nacional; é um uso indevido gritante do poder da presidência, para conferir vantagem a um partido político. ​

A lição que aprendemos com todos esses abusos de poder é que os republicanos atuais são exatamente como seus colegas nacionalistas brancos na Hungria e Polônia, que apesar de manterem fachadas democráticas na verdade estabeleceram regimes autoritários de partido único. Tudo que vimos indica que os republicanos farão qualquer coisa que puderem para tomar e reter o poder, e a eleição da terça-feira pode ser a última oportunidade de impedir que se firmem permanentemente no controle. ​

Oh, e caso você esteja tentando afirmar que os dois lados fazem o mesmo: não, não fazem. Restringir o registro de eleitores é quase exclusivamente um hábito republicano. Os democratas não são santos, é óbvio, mas parecem acreditar em democracia, e seus oponentes não. ​

Os democratas não fizeram do perigo claro e imediato para a democracia uma questão central em sua campanha; optaram por adotar o sistema de saúde como foco. E é difícil rebater sua análise. Afinal, o sistema de saúde está de fato em jogo nessa eleição. Milhões de americanos, especialmente, mas não apenas, os que tenham problemas de saúde pré-existentes, perderão sua cobertura caso os republicanos mantenham o controle da Câmara, porque isso permitiria que enfim revoguem a Lei do Acesso à Saúde, e que em seguida passem a atacar os programas federais de saúde Medicare e Medicaid. ​

Enquanto isso, a realidade é que eleitores comuns se deixam influenciar mais facilmente por questões que têm impacto real sobre seu bem-estar do que por preocupações mais abstratas sobre democracia e o Estado de Direito. E até muito recentemente, a mídia convencional vinha criticando os democratas por basearem sua campanha apenas na oposição a Trump (o que não era verdade, mas foi o que a mídia disse mesmo assim), enquanto descartava como histeria qualquer menção aos abusos de poder cometidos pelos republicanos. ​

Agora que o momento crucial chegou, todo mundo deveria ter em mente o que está em jogo. Não se trata apenas dos cortes de impostos ou do sistema de saúde, e qualquer pessoa que vote pensando apenas nessas questões está desconsiderando o quadro mais amplos. A sobrevivência da democracia dos Estados Unidos depende das urnas. ​

Tradução de PAULO MIGLIACCI ​

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