Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Sovacos, guetos brancos e desprezo

Quem despreza de verdade o chamado "coração" dos Estados Unidos?

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Quem despreza de verdade o chamado "coração" dos Estados Unidos?

"Se você vive no Meio-Oeste, onde mais quer morar a não ser Chicago? Ninguém quer morar em Cincinnati ou Cleveland, ou, sei lá, esses sovacos da América". Foi o que declarou Stephen Moore, o homem que Donald Trump planeja conduzir ao conselho do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, em um evento realizado em 2014 por uma organização de pesquisa chamada, ironicamente, Heartland Institute.

A plateia riu.

Moore é uma escolha indefensável por muitos motivos. Mesmo que não tivesse provado ser extraordinariamente misógino e que seu histórico pessoal não fosse tão feio, o seu retrospecto no campo da economia —sempre errado mas jamais disposto a admitir seus erros ou aprender com eles— bastaria para desqualificá-lo completamente.

Equipe médica atende homem estendido no chão
Nos Estados Unidos, a prescrição exagerada de analgésicos à base de opioides tem gerado um crescente abuso no uso dessas drogas; acima, homem em overdose de opiáceo - Reuters
 

Mas as declarações dele nesse discurso sobre o Meio-Oeste iluminam mais que sua inadequação para o Fed. Também oferecem uma ilustração de algo que venho percebendo há algum tempo: o desprezo muito mal disfarçado da elite conservadora pelos eleitores americanos do centro do país de cujos votos ela depende.

Não é a história que se costuma ouvir. Pelo contrário: a afirmação mais frequente é a de que os progressistas sentem desprezo pelo região central do país. Mesmo os progressistas aceitam essa afirmação, frequentemente, e se criticam por uma postura condescendente, prometendo fazer melhor.

Mas qual é a fonte dessa narrativa? Veja de onde vem a crença em que os progressistas não respeitam o coração do país, e a realidade é que ela pouco se relaciona ao que os democratas de fato dizem, quanto menos às suas políticas. Na verdade, essa narrativa é promovida constantemente pela Fox News e outras organizações de propaganda, que recorrem a citações tiradas do contexto e a invenções puras e simples.

Já o desprezo dos conservadores é verdadeiro, em contraste. A declaração de Moore sobre os "sovacos" evidentemente não causou choque à sua audiência, provavelmente porque visões derrisórias sobre os americanos comuns são muito frequentes entre os intelectuais de direita e, ainda que de modo mais discreto, entre os políticos de direita.

Sejamos claros: existe uma crise econômica e social real na região daquilo que uma recente análise definiu como "coração leste" dos Estados Unidos. A região sofre de nível de emprego persistentemente baixo para os homens em idade de trabalho, e viu alta na mortalidade causada por álcool, suicídio e opiáceos —"mortes por desespero", na definição de Anne Case e Angus Deaton.

O que existe por trás da crise? A opinião da maioria dos progressistas, até onde vejo, é de que ela reflete o declínio nas oportunidades econômicas, mudanças na economia que favoreceram as regiões metropolitanas ante as áreas rurais. Sob essa interpretação, o declínio nas oportunidades conduziu a desordenamento social, da mesma forma que o desaparecimento das indústrias urbanas solapou as comunidades que viviam no centro de áreas metropolitanas, meio século atrás.

Muitos conservadores, no entanto, atribuem a culpa às vítimas. Os problemas na região central dos Estados Unidos, na visão deles, são causados por um misterioso colapso nos valores morais e de família, que de alguma forma não afetou as cidades costeiras. O colapso moral é o tema de livros como "Coming Apart: the State of White America" [desmantelamento: o estado da América branca], de Charles Murray, e de inumeráveis artigos. Um ensaio muito lido, publicado pela "National Review", chega a rotular a problemática região centro-leste dos Estados Unidos como "gueto branco", com pessoas indolentes demais para deixarem a área em busca dos locais que oferecem empregos.

Assim, quem exatamente desrespeita a porção central dos Estados Unidos?

Quando se trata de políticos, é claro, o que eles dizem é muito menos importante do que o que eles fazem. Assim, o que as opções políticas dos políticos progressistas e conservadores dizem sobre o valor que eles atribuem ao coração da América?

Alguns democratas, especialmente a senadora Elizabeth Warren, vêm oferecendo propostas reais para ajudar áreas rurais. Elas provavelmente não bastariam para reverter o declínio econômico rural e das pequenas cidades, o que seria difícil de fazer mesmo com muito dinheiro e toda a boa vontade do mundo. Mas no mínimo as medidas ajudariam.

Enquanto isso, tudo que os republicamos têm a oferecer são fantasias sobre recuperar empregos em coisas como a mineração de carvão e a indústria. Na verdade, os fechamentos de minas de carvão continuaram e o déficit comercial nos produtos industrializados se alargou desde a posse de Trump.

O mais importante é pensar sobre o que aconteceria nas regiões problemáticas dos Estados Unidos caso os republicanos consigam fazer o que tentaram em 2017 e venham a impor cortes selvagens nas verbas do programa federal de saúde Medicaid e outros programas sociais.

Penso sempre na Virgínia Ocidental, onde o Medicaid cobre cerca de um terço da população não idosa do estado. E não estamos falando só de receber assistência médica, mas de criar empregos. Mais de 16% dos moradores da Virgínia Ocidental trabalham no ramo da saúde e assistência social, e menos de 3% na mineração. O que você acha que acontecerá com esses empregos se o Medicaid for esvaziado?

O ponto é que, se você escutar o que os conservadores dizem uns aos outros, em contraposição ao que eles fingem acreditar, se torna claro que o desprezo pelo centro da América está muito mais presente na direita do que na esquerda. E esse desprezo se reflete na agenda política da direita, que prejudicaria gravemente as pessoas que afirma considerar como os únicos americanos reais.

Sei que esse é um argumento difícil de provar. De fato, estou certo de que algumas das pessoas que vivem no chamado coração dos Estados Unidos considerarão qualquer esforço de convencê-las de que estão sendo enganadas como só mais um exemplo de desrespeito por parte dos progressistas. Mas todos os americanos, não importa onde vivam, merecem saber a verdade.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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