Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Paul Krugman

Mar-a-Lago quer abocanhar a saúde pública britânica

De privatização, compadrio e acordos comerciais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Provavelmente todo mundo que acompanhou a visita de Donald Trump ao Reino Unido deve ter seu momento favorito de fiasco diplomático. Mas o momento que provavelmente mais fez por envenenar o relacionamento com o mais antigo aliado dos Estados Unidos —e solapar quaisquer chances do acordo comercial "fenomenal" que Trump afirmava estar oferecendo— foi a aparente sugestão pelo presidente de que o acordo poderia envolver a abertura do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) britânico a empresas privadas americanas.

Dizer que o melhor argumento que alguém apresentou em sua defesa é o de que ele não sabia do que estava falando revela muita coisa sobre as qualidades de nosso atual presidente. No entanto, ele sabe o que o NHS é —mas não compreende o papel que o sistema representa na vida britânica.

Afinal, no ano passado Trump tuitou que os britânicos estavam se manifestando nas ruas em protesto contra um sistema de saúde "que está falindo e não funciona". Na verdade, as manifestações eram a favor do NHS, e pediam mais verbas do governo para o sistema.

O presidente americano, Donald Trump (dir.) ao lado da rainha Elizabeth 2ª, da Inglaterra, e do príncipe Charles. - Jack Hill - 5.jun.19/Pool/AFP

Mas pouco importa o que estivesse passando pela cabeça de Trump. Vamos em lugar disso nos concentrar no fato de que nenhum político americano —e Trump ainda menos— tem direito de oferecer conselhos a outros países quanto ao sistema de saúde. Porque os Estados Unidos têm o sistema de saúde de pior desempenho entre os países avançados— e Trump está fazendo tudo que pode para degradá-lo ainda mais.

O sistema de saúde britânico e o americano ficam em extremos opostos de um espectro definido pelos papéis relativos do setor público e do setor privado.

Ainda que a Lei de Acesso à Saúde (Obamacare) dos Estados Unidos tenha expandido a cobertura de saúde e ampliado o papel do programa federal de saúde Medicaid, a maioria dos americanos continua a obter sua cobertura de saúde (se é que o faz) de empresas privadas, e a receber tratamentos em hospitais e clínicas com fins lucrativos. Em outros países, como o Canadá, o governo paga as contas mas os provedores de serviços de saúde são empresas privadas. No Reino Unido, porém, existe medicina socializada real. O governo é dono dos hospitais e paga os salários dos médicos.

Como funciona o sistema? Muito melhor do que a filosofia conservadora imagina.

Para começar, contas por tratamentos médicos não são problema, para as famílias britânicas. Elas não precisam se preocupar com a possibilidade de falir por causa do custo de um tratamento, e nem abdicar de tratamentos essenciais porque não conseguem bancar as franquias do seguro-saúde.

Seria de imaginar que prover uma cobertura universal como essa é proibitivamente dispendioso. Na verdade, porém, o Reino Unido gasta menos de 50%, em termos de custo por paciente, do que é o caso nos Estados Unidos.

Os serviços de saúde que os britânicos recebem são bons? A julgar pelos resultados, sim. Os britânicos têm expectativa de vida mais longa que os americanos, mortalidade infantil muito menor e uma "mortalidade associada ao sistema de saúde" muito mais baixa.

Isso significa que os Estados Unidos deveriam adotar um sistema ao estilo britânico? Não necessariamente.

A realidade é que existem múltiplas maneiras de fornecer cobertura universal de saúde. O modelo canadense, com pagamentos concentrados no governo mas serviços prestados por empresas privadas, também funciona. Um modelo de concorrência entre prestadores privados de serviços, como o da Suíça, funciona, igualmente, desde que o governo trabalhe bem em regulamentar o mercado e subsidie devidamente as famílias de renda mais baixa.

Mas o NHS funciona. Tem seus problemas - que sistema não os tem? - mas há um motivo para que os britânicos o amem.

Minha experiência ao lidar com os conservadores dos Estados Unidos, quanto a questões de saúde, é a de que eles simplesmente se recusam a acreditar que os sistemas de outros países funcionem melhor que o nosso. A ideologia deles dispõe que o setor privado é sempre melhor que o governo, e eles se recusam a admitir qualquer prova em contrário.

Na verdade, isso os leva a rejeitar até mesmo certas áreas de nosso sistema que funcionam bem. O que me conduz ao motivo para que Trump deveria ser a última pessoa a criticar o NHS.

O fato é que os Estados Unidos têm uma versão, em escala reduzida, do NHS: a Administração de Saúde dos Veteranos (VHA, na sigla em inglês), parte do Departamento de Assuntos de Veteranos. E, como o NHS, a VHA funciona razoavelmente bem.

Alguns de vocês devem estar meneando a cabeça em discordância, porque já ouviram muita coisa horrível sobre a VHA - histórias de imensa ineficiência, e de longas esperas por tratamento. Mas existe um motivo para que tenham ouvido essas histórias: elas costumam ser espalhadas sistematicamente por políticos e organizações de direita que se aferram a exemplos negativos como parte de seus esforços para desmantelar e privatizar o sistema.

A realidade, de acordo com estudos independentes, é que em média o tempo de espera na VHA é quase sempre inferior ao do setor privado, e os tratamentos dos hospitais da VHA são melhores.

Mas esse histórico positivo pode mudar, em breve. Historicamente, as políticas da VHA, assim como as do NHS, foram ditadas em geral por profissionais da medicina. Mas um relatório da ProPublica publicado no ano passado revelou que as políticas da VHA agora estão sendo ditadas não pelos líderes do sistema, mas por um trio de comparsas de Trump que fazem parte do "pessoal de Mar-a-Lago".

O líder do triunvirato, aliás, é Ike Perlmutter, presidente do conselho da Marvel Entertainment. E se você acredita que a influência de Perlmutter conduzirá a custos menores e cuidados melhores para os veteranos das forças armadas americanas, deve acreditar também que o Capitão América existe de verdade.

O que nos conduz de volta às declarações do presidente sobre o NHS. O que quer que Trump tenha imaginado que estava dizendo, o país anfitrião estaria justificado em entender como indicação de que o acordo comercial prometido levaria ao sistema de saúde britânico privatização e compadrio no estilo Trump. E isso seria mesmo "fenomenal".
 
The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.