Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Elogio aos líderes falíveis

Nos últimos meses, descobrimos que estrago um presidente que nunca está errado é capaz de causar

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Na semana passada, Joe Biden fez uma brincadeira de improviso que podia ser interpretada como declaração de que ele está seguro de que contará com os votos do eleitorado negro.

Não foi nada grave –Biden, que serviu lealmente como vice-presidente de Barack Obama, há muito tem afinidade com os eleitores negros, e fez questão de divulgar propostas cujo objetivo é reduzir a disparidade entre os grupos raciais na saúde e no nível de renda. Mesmo assim, Biden pediu desculpas.

E ao fazê-lo, ofereceu um forte argumento em favor de escolhê-lo em novembro, de preferência a Donald Trump. Biden, afinal, é capaz de admitir que errou.

Todo mundo comete erros, e ninguém gosta de admitir que estava errado. Mas encarar os erros passados é um dos aspectos cruciais da liderança.

Joe Biden, ex-vice presidente dos Estados Unidos e candidato à Presidência pelo Partido Democrata - Mike Blake/Reuters

Considere, por exemplo, a mudança na orientação quanto ao uso de máscaras. Na fase inicial da pandemia, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), disse aos americanos que não era necessário usar máscaras em público.

No começo de abril, porém, o CDC mudou de rumo, diante de novas indicações sobre como o coronavírus pode ser difundido por pessoas que não exibem qualquer sintoma. Por isso, recomendou que todos começassem a usar máscaras de tecido sempre que saíssem de casa.

O que teria acontecido se o CDC tivesse se recusado a admitir que estava errado, e em lugar disso mantivesse sua recomendação inicial? A reposta, quase certamente, seria um total de mortes ainda maior do que aquele que já temos com a Covid-19. Em outras palavras, se recusar a admitir erros não é apenas um defeito de caráter; pode causar desastres.

E sob Donald Trump, foi isso exatamente que aconteceu.

A incapacidade patológica de Trump de admitir erros –e sim, a coisa chega realmente ao nível de patologia– é evidente há anos, e teve consequências sérias. Por exemplo, fez dele um alvo fácil para ditadores estrangeiros como Kim Jong-un, da Coreia do Norte, que sabem que podem recuar facilmente de quaisquer promessas que Trump acredite que tenham feito.

Afinal, condenar as ações de Kim agora significaria admitir que ele estava errado ao afirmar um avanço diplomático importante.

Mas foi necessária uma pandemia para mostrar quanto estrago um líder com complexo de infalibilidade pode causar. Não é exagero sugerir que a incapacidade de Trump de admitir erros causou a morte de milhares de americanos. E parece que causará muitas outras mortes antes que a crise passe.

De fato, na mesma semana em que Biden cometeu sua gafe inofensiva, Trump redobrou os esforços para promover sua bizarra ideia de que a hidroxicloroquina, um medicamento contra a malária, é capaz de prevenir a Covid-19, afirmando que ele mesmo a estava usando, apesar dos novos estudos que indicam que o medicamento na verdade aumenta a mortalidade. É possível que jamais venhamos a saber quantas pessoas morreram porque Trump persistiu em promover esse remédio, mas o número é certamente maior que zero.

No entanto, a estranha incursão de Trump ao ramo da farmacologia empalidece em comparação com a forma pela qual sua insistência em que está sempre certo sobre tudo paralisou a resposta dos Estados Unidos ao mortífero vírus.

Sabemos agora que, em janeiro e fevereiro, Trump ignorou repetidos avisos das agências de inteligência sobre a ameaça representada pelo vírus. Ele e seu círculo mais íntimo de assessores não queriam ouvir más notícias, e especialmente não queriam ouvir qualquer coisa que ameaçasse o mercado de ações.

O que é realmente chocante, porém, é o que aconteceu na primeira semana de março. Àquela altura, as provas quanto à pandemia emergente eram esmagadoras. Mas mesmo assim Trump & companhia se recusaram a agir, persistindo em sua retórica feliz – é fácil suspeitar que isso aconteceu principalmente porque eles eram incapazes de admitir que estavam errados em seus esforços anteriores por reassegurar as pessoas. Quando Trump enfim decidiu encarar a realidade (por algum tempo), era tarde demais para impedir um total de mortes que está por ultrapassar a marca das 100 mil.

E o pior pode estar por vir. Se você não se apavorou com as fotos que mostram multidões de pessoas, sem máscaras e sem praticar distanciamento social, reunidas no feriado do Memorial Day, é porque não estava prestando atenção.

No entanto, caso surja uma segunda onda de casos de Covid-19, Trump –que vinha apelando insistentemente por um relaxamento das medidas de distanciamento social apesar de alertas dos especialistas em saúde– já declarou que não pedirá por um segundo lockdown. Afinal, isso significaria admitir, ao menos implicitamente, que ele estava errado ao pressionar por uma reabertura rápida, para começar.

O que me conduz de volta ao contraste entre Trump e Biden.

Trump de algumas maneiras é uma figura digna de pena –ou seria, se suas falhas de caráter não estivessem conduzindo a tantas mortes. Imagine como é ser tão inseguro, tão desprovido de um senso de valor pessoal, que você precise se engajar não só em bazófias constantes mas também se afirmar infalível sobre todos os assuntos.

Biden, por outro lado, embora talvez não seja o candidato à presidência mais impressionante de todos os tempos, claramente se sente confortável em sua pele. Sabe quem ele é, e por isso foi capaz de se reconciliar com antigos críticos como Elizabeth Warren. E quanto comete um erro, não tem medo de admitir.

Nos últimos meses, descobrimos que estrago um presidente que nunca está errado é capaz de causar. Não seria um alívio que a Casa Branca fosse ocupada por alguém que não é infalível?

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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