Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Trump, o correio, e a desunião dos Estados Unidos

O serviço postal facilita a inclusão dos cidadãos, e é por isso que Trump o odeia

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Em junho, o site de verificação de fatos Factcheck.org criticou Joe Biden, em um “post” intitulado “Biden alardeia teoria de conspiração eleitoral sem base sólida”. A questão é que Biden havia dado a entender que Donald Trump desejava “cortar o dinheiro do correio para que este não possa entregar votos realizados por via postal”. Segundo o site, não havia provas de que “a posição de Trump com relação ao sistema postal dos Estados Unidos se relacione com a eleição presidencial”.

Poucos dias atrás, o Factcheck.org reconheceu que Biden estava certo, na verdade. A confirmação? Declarações do próprio Trump.

Nancy Pelosi está convocando os deputados da Câmara Federal, que está em recesso de verão, para debater um projeto de lei sobre o assunto, e com bom motivo. Temos não só uma mas duas crises constitucionais a caminho. A primeira é que milhões de votos podem não ser contados. A segunda é que atrasos na contagem de votos encaminhados por via postal podem permitir que Trump afirme vitória em uma eleição que ele na verdade perdeu.

Esses pesadelos quanto a novembro são o motivo para que precisemos agir urgentemente para garantir a integridade do serviço postal dos Estados Unidos. Mas também existe um aspecto maior, no ataque ao correio. Ele é parte de uma ofensiva mais ampla contra as instituições que mantêm nossa unidade nacional.

O presidente Donald Trump em Wisconsin, Estados Unidos - Tom Brenner - 17.ago2020/Reuters

Afinal de contas, havia um motivo para que a constituição conferisse especificamente ao Congresso a capacidade de “estabelecer correios e estradas postais”. Os fundadores claramente entendiam algum sistema postal nacional como uma maneira de transformar em realidade a ideia, ainda hesitante, de fazer dos Estados Unidos uma nação. Na verdade, em seus primeiros anos, um dos papéis essenciais do correio era a entrega de jornais, como forma de manter os americanos informados e conectados.

O serviço postal na forma que conhecemos não emergiu de uma vez. Em lugar disso, evoluiu gradualmente, por meio de um acúmulo tanto de legislação formal quanto de precedentes.

A entrega direta de correspondência a domicílios urbanos só veio a começar em 1863, e a entrega rural gratuita só surgiu definitivamente em 1902. O serviço de entregas de pacotes não surgiu antes de 1913; antes, os usuários rurais tinham de confiar em um cartel de empresas privadas que conspiravam para manter elevadas as tarifas de envio.

Todas essas mudanças, no entanto, tinham um tema comum: colocar os americanos em contato uns com os outros, e com o mundo em geral, com mais facilidade. Parte chave da missão do correio é que este tem uma “obrigação de serviço universal”, a de “unir a nação” e “facilitar a inclusão dos cidadãos”.

Uma pessoa usa o serviço postal em Los Angeles, California - Robyn Beck/AFP

Por boa parte da história dos Estados Unidos, isso envolvia principalmente oferecer a áreas remotas o acesso aos frutos do progresso econômico urbano. É difícil superestimar a diferença que o serviço de mala direta, tornado possível pela expansão do sistema postal, fez para a qualidade da vida rural. E a entrega de correspondência continua vital em áreas rurais, que são mal servidas (e a custo muito alto) pelas empresas privadas de entregas.

Mas não devemos falar apenas das populações rurais. O correio continua a ser vital, em muitos casos literalmente, para os muitos americanos que, por qualquer que seja o motivo, têm capacidade limitada de, por exemplo, visitar uma farmácia para apanhar os remédios que lhes são receitados. O Departamento de Serviços a Veteranos entrega pelo correio cerca de 80% dos medicamentos distribuídos sob receita aos pacientes que atende.

Quando irrompeu a crise quanto ao voto pelo correio, alguns dos suspeitos habituais, na ala direita, começaram a denunciar o correio como um mau negócio, deficitário. Mas os fundadores não incluíram a cláusula postal na constituição porque vissem o serviço postal como oportunidade de negócios; o correio tinha por objetivo servir a objetivos nacionais mais amplos –e ainda o faz.

Mas, talvez você pergunte, por que essa lógica deveria ser aplicar apenas ao correio? Não deveríamos, então, apoiar outras instituições que mantêm a união nacional? Sim, e o fazemos.

A Administração da Eletrificação Rural, criada na década de 1930 para levar a eletricidade a áreas rurais, tinha por objetivo a unificação nacional, além do desenvolvimento econômico –e, começando em 1949, subsidiou também a expansão das redes de telefonia rural. O Sistema Rodoviário Interestadual foi justificado em parte por afirmações dúbias quanto à segurança nacional, mas teve o efeito de reforçar a união do país.

E a internet? Deveríamos ter uma política para garantir que os americanos tenham acesso também à telecomunicação moderna? Na verdade, sim. ​

O acesso à internet nos Estados Unidos é muito mais caro do que em outros países avançados porque operadores privados que funcionam quase sem regulamentação abusam de seu poder de mercado, assim como as empresas privadas de entregas exploravam os agricultores antes da criação do serviço de entrega de pacotes pelo correio.

É claro que não devemos esperar que cada serviço da economia moderna seja sujeitado à obrigação de serviço universal. Nem todos precisamos de acesso a clubes de golfe ou a barcos particulares, para participar plenamente da vida nacional.

Mas a maioria dos americanos –o que provavelmente inclui a maioria dos 91% do público cuja opinião sobre o correio é positiva– acredita que algumas coisas deveriam estar disponíveis universalmente, mesmo que fornecê-las não seja lucrativo, porque elas são componentes importantes da cidadania plena.

Infelizmente, Trump e aqueles que o cercam não compartilham dessa crença, talvez por não aceitarem a ideia de “cidadania plena”, para começar. E esse é um dos motivos para que venham tentando paralisar o correio, além do fato de que isso representa sua melhor chance de roubar a eleição.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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