Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Os republicanos não conseguem lidar com a verdade

Muito antes da pandemia, partido já negava as mudanças climáticas

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As tentativas continuadas do presidente Donald Trump de reverter uma eleição na qual foi derrotado decisivamente mais de um mês atrás são, como muito do que ele fez no cargo, chocantes mas não surpreendentes. Quem imaginava que ele deixaria a Casa Branca silenciosamente?

O que as pessoas talvez não estivessem tão preparadas para encontrar é a forma pela qual o partido de Trump como um todo vem apoiando suas perigosas ilusões. De acordo com uma pesquisa do jornal The Washington Post, apenas 27 membros republicanos do Congresso estão dispostos a declarar que Joe Biden venceu. A despeito da completa falta de provas de fraude em escala significativa, dois terços das pessoas que se declaram republicanas responderam a uma pesquisa da Reuters/Ipsos afirmando acreditar que a eleição foi manipulada.

Mas essa disposição de acatar mentiras viciosas e que colocam em risco a democracia não deveria surpreender. Afinal, quando é que os republicanos aceitaram com facilidade um fato que lhes fosse politicamente inconveniente? Está claro há anos que o moderno Partido Republicano não consegue lidar com a verdade.

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante cerimônia no Salão Oval, na Casa Branca, em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante cerimônia no Salão Oval, na Casa Branca, em Washington - Brendan Smialowski - 3.dez.20/AFP

Uma indicação evidente é que a recusa republicana de aceitar os resultados da eleição se segue a meses de recusa em reconhecer os perigos do coronavírus, mesmo que a Covid-19 tenha se tornado a maior causa de morte nos Estados Unidos, e mesmo que um número surpreendente de pessoas na órbita de Trump tenham sido infectadas.

E, como seria de esperar, a negação do vírus e a negação do resultado da eleição convergiram quase com perfeição no sábado, quando Trump discursou perante uma grande plateia, na qual pouca gente usava máscara, na Geórgia –o que criou a possibilidade de um contágio em escala gigantesca– e exigiu que o governador do Estado desconsiderasse os resultados da eleição. No dia seguinte, Rudy Giuliani, que vem comandando os esforços de Trump para se agarrar ao cargo, foi hospitalizado com o vírus.

O fato é que a rejeição republicana aos fatos não começou em 2020, ou nem mesmo na era Trump. A negação quanto à mudança do clima – que inclui afirmações de que o aquecimento global é uma trapaça perpetrada por uma cabala de cientistas internacionais– é um distintivo de identificação com o partido há muitos anos. Teorias alucinadas de conspiração sobre o casal Clinton circulavam abertamente na direita por boa parte da década de 1990.

E um episódio meio esquecido me parece representar um prenúncio forte do que estamos vendo agora: a reação dos republicanos à introdução, em geral bem sucedida, do Obamacare.

A Lei de Acesso à Saúde entrou plenamente em vigor em 2014, em meio a previsões de calamidade feitas pelos republicanos. Eles afirmavam que a lei causaria uma disparada nos preços dos planos de saúde, que não reduziria o número de pessoas desprovidas de cobertura e que teria efeito devastador sobre o emprego.

Nenhuma dessas coisas aconteceu. Em lugar disso, milhões de americanos obtiveram cobertura de saúde de que antes não dispunham. A criação de empregos continuou, com três milhões de postos de trabalho criados nos 12 meses que se seguiram à implementação da lei. O Obamacare pode ter ficado um pouco aquém das expectativas de seus proponentes (embora ninguém antecipasse que ele viesse a prover cobertura universal), mas desde o começo ajudou muitos americanos, e não chegou nem perto de ser o desastre que seus oponentes predisseram.

Até onde sei, porém, nenhum republicano importante se dispôs a admitir que os alertas apocalípticos do partido haviam se provado falsos, e muito menos a discutir os motivos para esse erro. E os republicanos tampouco fizeram qualquer esforço para desenvolver um plano de saúde melhor. (A lei do Obamacare foi assinada há quase 11 anos, e continuamos à espera da proposta deles.) Em lugar disso, os líderes do partido simplesmente agiram como se a catástrofe prevista tivesse se materializado.

Por exemplo, John Boehner, presidente da Câmara dos Deputados naquele momento, insistiu em que havia acontecido uma “queda líquida” no número de pessoas providas de planos de saúde. E, depois do ganho de três milhões de empregos, Jeb Bush (lembram-se dele?) insistiu em que “o Obamacare é o grande supressor de empregos dessa chamada recuperação”.

E, em uma atitude que prenunciou as tentativas desesperadas da equipe de Trump para encontrar provas de fraude na eleição, organizações de direita saíram em busca de histórias de horror, exemplos de americanos comuns cujas vidas tivessem sido devastadas pelo Obamacare.

É justo afirmar que, embora não haja provas de fraude eleitoral significativa, algumas pessoas foram realmente prejudicadas pela reforma da saúde –a maioria delas indivíduos jovens e saudáveis que antes contavam com planos de saúde baratos e cuja renda era alta demais para que recebessem subsídios. Mas não eram essas as vítimas que os republicanos queriam encontrar. Em lugar disso, eles saíram contando histórias sobre americanos comuns de classe trabalhadora que supostamente haviam perdido o acesso a planos de saúde com preços aceitáveis.

Nenhuma dessas histórias sobreviveu ao escrutínio. Mas isso não fez diferença para o Partido Republicano. Como escrevi na época, os republicanos já tinham –pré-Trump– entrado na era da política pós-verdade.

É evidente que existe uma grande diferença em termos de impacto imediato entre se recusar a aceitar provas que contradizem suas preconcepções políticas e se recusar a aceitar os resultados de uma eleição. Mas a mentalidade envolvida é a mesma.

O ponto é que, quando um partido adota o hábito de rejeitar os fatos que não deseja ouvir, um fato que ele certamente desejará rejeitar, mais cedo ou mais tarde, é o fato de que perdeu uma eleição. Nesse sentido, existe uma linha direta entre, por exemplo, o abraço republicano à negação da mudança climática e a disposição do partido de acatar os esforços de Trump para reter o poder.

E o histórico republicano no que tange a lidar com realidades inconvenientes nos dá uma boa ideia sobre quando o partido aceitará Joe Biden como legítimo vencedor da eleição de 2020: a saber, nunca.

Tradução de Paulo Migliacci

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