Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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O duradouro mito dos infernos urbanos nos Estados Unidos

Americanos ainda acreditam que grandes cidades são infernos de crime e depravação

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No final de semana, J.D. Vance, autor de “Hillbilly Elegy” e agora candidato trumpista ao Senado em Ohio, tuitou que estava planejando uma visita a Nova York, e tinha ouvido dizer que a cidade é “repulsiva e violenta”.

Vance, que estudou Direito na Universidade Yale e trabalha como executivo de capital para empreendimentos, certamente sabe que as coisas não são assim. Mas presumivelmente espera que os eleitores republicanos acreditem no contrário.

Mas por que será que tantos americanos ainda acreditam que as grandes cidades do país são infernos de crime e depravação?

Por que tantos políticos acreditam que ainda podem conduzir campanhas baseadas no suposto contraste entre o mal urbano e as virtudes das cidades pequenas, em uma era na qual muitos indicadores sociais parecem piores no interior do que nas grandes áreas metropolitanas das duas costas?

Homem branco vestido de terno discursa ao microfone; no alto da imagem há uma bandeira dos Estados Unidos e ao fundo um céu com nuvens
Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos durante visita ao estado do Texas - Callaghan O'Hare - 30.jun.21/Reuters

É certo que tivemos uma alta no número de homicídios no país —embora não no de crimes em geral— durante a pandemia, por motivos que continuam a não ser claros. Mas Nova York continua mais segura do que há uma década, imensamente mais segura do que há 30 anos e, se isso vale alguma coisa, consideravelmente mais segura do que Columbus, Ohio.

E se você deseja destacar uma região específica como vítima de uma crise, Nova York dificilmente seria o lugar a escolher.

Os maiores problemas sociais dos Estados Unidos acontecem-no chamado “heartland leste”, um arco que se estende da Louisiana ao Michigan. É essa a área em que número crescente de homens em idade primária de trabalho não dispõe de empregos, e onde as “mortes por desespero” —ou seja, causadas por álcool, suicídio e overdoses de drogas— atingem totais elevados.

Percebam que não atribuo esses problemas nas áreas centrais do país a alguma forma de colapso moral da parte dos moradores locais. A deterioração social da região tem raízes econômicas claras.

A ascensão da economia do conhecimento conduziu a uma concentração crescente do emprego e da riqueza nas grandes áreas metropolitanas, cujas populações têm nível educacional elevado, deixando para trás boa parte das regiões rurais e das pequenas cidades dos Estados Unidos.

E essa perda de oportunidades terminou por ser refletida na desintegração social, da mesma forma que o desaparecimento de empregos fez em muitas áreas urbanas deterioradas, meio século atrás.

É estranho dizer, porém, que a maior parte das pessoas que se proclamam “populistas”, como Vance —ou Donald Trump— não estabelecem os paralelos evidentes entre os problemas da região central do país e os dos americanos em outras eras, e tampouco propõem qualquer coisa que possa melhorar a situação.

Em lugar disso, continuam a repetir a demagogia de 1975, contrastando uma visão idealizada do coração do país, que se parece ainda menos com a realidade, a uma visão sombria da vida urbana que está desatualizada há décadas.

E o contraste mítico entre as grandes cidades malignas e as pequenas cidades bondosas tem efeitos destrutivos, e até letais, sobre as políticas públicas.

Há relatórios que apontam que um dos motivos para que o governo Trump tenha decidido minimizar a gravidade da pandemia da Covid-19, em seus primeiros estágios, foi a crença de que ela era problema apenas para as cidades grandes e os estados de maioria democrata; houve definitivamente muitas asserções de que o risco só era severo em lugares com grandes populações.

E houve muitos pronunciamentos —alguns deles em tom de inconfundível júbilo—no sentido de que a pandemia mataria as grandes cidades e os estados que as abrigam.

Na verdade, a Covid-19, ainda que inicialmente tenha atingido duramente a cidade de Nova York, não era um problema metropolitano; a densidade populacional aparentemente não influi na incidência da doença. Por exemplo, o estado do Dakota do Sul tem a mais ou menos a mesma população da cidade de San Francisco, e registrou quatro vezes mais mortes causadas pela Covid.

E agora, estados rurais e de inclinações republicanas registram índices de vacinação muito inferiores aos dos estados de maioria democrata, e por isso, se surgir uma nova onda de contágios, o mito de que as cidades são os fulcros do contágio será virada de cabeça para baixo.

Oh, e embora você talvez tenha ouvido que muita gente está fugindo da Califórnia, liberal e urbanizada, isso pode ser só mais um mito. A Califórnia está sofrendo uma crise de habitação séria, causada por preocupações particularistas dos proprietários de imóveis, mas, como no caso de Nova York, se você ouviu dizer que o estado se tornou um lugar péssimo para morar, está escutando propaganda da direita.

Além de ajudar a paralisar nossa resposta à pandemia, o mito da virtude rural e do vício urbano significa que muitos eleitores republicanos parecem desinformados de que estão entre os maiores beneficiários do “governo grande” que seu partido diz que deseja eliminar.

Ou seja, eles continuam a imaginar que o governo gasta dinheiro para beneficiar moradores urbanos dependentes da Previdência, e não em benefício de pessoas como eles.

Por exemplo, será que os eleitores dos estados de maioria republicana sabem que os gastos federais em seus estados —muitos dos quais em forma de benefícios da Previdência e do programa de saúde Medicare— superam em muitos os impostos que eles pagam a Washington?

No Kentucky, o exemplo mais extremo, o influxo anual de dinheiro federal é US$ 14 mil (R$ 73,1 mil) mais alto, per capita, do que a arrecadação federal no estado.

Se os eleitores soubessem disso, estariam tão dispostos assim a apoiar os cortes de benefícios aos trabalhadores americanos e os cortes nos impostos das grandes empresas e dos ricos?

Quero deixar bem claro que não estou criticando políticas que na prática subsidiam muitos estados. Somos todos americanos, e deveríamos estar dispostos a ajudar uns aos outros.

O problema, em lugar disso, está em políticos cínicos que depreciam algumas partes do país e dão a entender que essas regiões não são parte da “verdadeira América”. Esse cinismo matou milhares de pessoas na pandemia —e poderia também matar a democracia, facilmente.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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