Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Biden contra a bancada dorminhoca

Se um dia houve um momento em que legisladores democratas podiam se posicionar à direita de seu partido, o momento passou há muito tempo

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O jornalismo político muitas vezes retrata os progressistas como pouco práticos e intransigentes, nada dispostos a aceitar os acordos necessários a conseguir que as coisas sejam realizadas, enquanto os centristas são realistas e pragmáticos. Mas o que está acontecendo no Congresso dos Estados Unidos neste momento é exatamente o oposto.

A ala esquerda do Partido Democrata está propondo políticas públicas sensatas e populares, como a negociação sobre preços de remédios e medidas de repressão contra os ricos preguiçosos que sonegam impostos, e se mostrou disposta a aceitar grandes acordos a fim de levar adiante a agenda do presidente Joe Biden. Por exemplo, os US$ 3,5 trilhões (R$ 18,97 trilhões) em gastos públicos que Biden está pedindo para os próximos 10 anos são um valor muito inferior ao que os progressistas desejavam originalmente. A ala conservadora do partido, porém, parece determinada a não ceder um centímetro, mesmo que isso tire dos trilhos as propostas do presidente.

O que está acontecendo? Ao contrário da lenda, muitos dos democratas que estão vacilando não vêm de distritos eleitorais nos quais a disputa com os republicanos é acirrada; de qualquer forma, a agenda econômica de Biden é popular em quase toda parte. Por exemplo, seus elementos principais contam com apoio esmagador no estado da Virgínia Ocidental. Além disso, será que alguém realmente acredita que o resultado da eleição legislativa do ano que vem vai depender de o pacote econômico, se ele vier a existir, ter um valor de US$ 1,5 trilhão (R$ 8,13 trilhões) em lugar de US$ 3,5 trilhões?

Biden antes de tomar dose de vacina contra o coronavírus extra, na Casa Branca - Kevin Lamarque - 27.set.2021/Reuters

Poderíamos, é claro, apontar para os suspeitos de sempre: o dinheiro das grandes empresas e dos doadores ricos para causas políticas está com certeza causando impacto. Mas algo que Eric Levitz, da revista New York, afirmou em um artigo recente me impressionou e ajudou a esclarecer uma questão que eu estava tentando deslindar. Segundo ele, alguns democratas parecem ter formado suas percepções sobre economia e política na era Clinton, e não as atualizaram de lá para cá.

Ou seja, faz muito sentido ver os problemas de Biden para conseguir colocar seus planos em prática como causados pela bancada dos dorminhocos, democratas que continuam a viver intelectualmente duas décadas atrás e ainda não atualizaram suas ideias para levar em conta os Estados Unidos como realmente são hoje.

Especificamente, alguns democratas ainda parecem acreditar que podem chegar ao sucesso, econômica e politicamente, sendo uma versão um pouco mais leve dos republicanos. É duvidoso que isso tenha sido verdade algum dia. E com certeza não é verdade agora.

Do lado econômico, havia a percepção generalizada, no final da década de 1990, de que a dureza da política social dos Estados Unidos —nosso alto nível de desigualdade, nossa falta de uma rede de segurança social ao estilo europeu – era em boa medida justificada pelo sucesso econômico do país. Quando Bill Clinton declarou, em 1996, que “a era do governo grande acabou”, parecia que a recompensa por um governo pequeno era uma economia florescente. Estávamos avançando muito, tecnologicamente, e superando os demais países de economia avançada do planeta na criação de empregos; é difícil imaginar hoje o senso de triunfalismo americano que dominava as opiniões da elite do país por volta do ano 2000.

Mas isso não duraria. O boom gerado pela produtividade criada com os avanços tecnológicos, iniciado na metade da década de 1990, perdeu a força 10 anos mais tarde. E os Estados Unidos jamais estabeleceram uma liderança tecnológica duradoura; a esta altura, para recorrer a um indicador visível, muitos países europeus contam com acesso à internet mais rápido e mais barato do que o americano.

A criação de empregos nos Estados Unidos também perdeu o ímpeto; a probabilidade de que pessoas em idade primária de trabalho estejam empregadas é a mesma na Europa e nos Estados Unidos.

Para além da economia, na década de 1990 muitos democratas acreditavam que seria possível atrair os votos dos eleitores brancos sem educação universitária por meio de uma combinação de retórica que validava suas atitudes —denúncias a Sister Souljah, posições duras sobre o crime— e cortes em programas que eram vistos como benéficos principalmente para pessoas negras. Clinton na verdade pôs fim ao programa de assistência a famílias com crianças dependentes, aquele que a maioria das pessoas criticava ao usar a expressão “vagabundos da Previdência”, sem oferecer um substituto real.

Mas nada disso funcionou. Se o antagonismo racial era propelido por percepções quanto à vida desordenada nos centros decadentes das grandes cidades, ele deveria ter desaparecido em meio ao declínio espetacular no número de crimes violentos entre o início da década de 1990 e a metade da década de 2010. Isso não aconteceu. Se esse antagonismo refletisse a percepção de que muitos homens negros capazes de trabalhar não estavam empregados, ele deveria ter desaparecido quando o problema do desemprego entre os homens em idade primária de trabalho (e o desordenamento social que acompanha a falta de empregos) se tornou tão severo em áreas rurais com maioria branca esmagadora quanto era nas cidades decadentes. Mas não desapareceu.

Em lugar disso, o comportamento eleitoral dos eleitores brancos de classe trabalhadora parece mais que nunca impulsionado pelo ressentimento racial. E não se pode reconquistar esses eleitores por meio de cortes nos gastos sociais; eles preferem que sua hostilidade racial seja servida crua. Trump e os seus lhes dão isso; democratas não podem fazê-lo sem se tornarem trumpistas.

Em outras palavras, se um dia houve um momento em que os legisladores democratas podiam nadar contra a corrente como indivíduos e se posicionar à direita de seu partido, o momento passou há muito tempo. Não importa o quanto eles forcem Biden a moderar suas ambições; não importa quantas declarações fervorosas de apoio à responsabilidade fiscal eles divulguem. Os republicanos continuarão a retratá-los como socialistas que querem zerar as verbas da polícia, e os eleitores que os democratas desorientados estão tentando conquistar acreditarão no que seus rivais dizem.

Assim, meu apelo aos democratas “moderados” é, por favor, acordem. Não estamos mais em 1999, e seu destino político depende de ajudar Joe Biden a governar efetivamente.

Tradução de Paulo Migliacci

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