Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Uma cruzada por Deus, a família e... bitcoin?

O que é a aliança cada vez mais profunda entre os trumpistas e a criptomoeda

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Josh Mandel, um discípulo de Trump que tenta ser nomeado para senador republicano pelo estado de Ohio (centro-norte dos Estados Unidos), tuitou recentemente seus princípios: "Ohio precisa ser um estado pró-Deus, pró-família, pró-bitcoin". De fato, há uma antiga conexão entre o apoio à bitcoin e o extremismo de direita —como a tradicional associação entre o conservadorismo e a obsessão por ouro, só que mais forte.

Então o que isso significa?

O fato de muitos entusiastas da bitcoin dizerem coisas bizarras, por si só, não significa que as criptomoedas sejam uma má ideia. As pessoas podem apoiar coisas certas por motivos errados. Por exemplo, tenho certeza de que muitas pessoas aceitam o consenso científico sobre, digamos, a eficácia das vacinas não porque elas valorizem a pesquisa avaliada por pares, mas porque são impressionadas por pessoas em aventais de laboratório que usam palavras difíceis.

Mas realmente parece importante compreender os aspectos de culto do movimento da criptomoeda.
Primeiro, porém, um pouco sobre economia.

Representação de Bitcoin - Ozan Kose - 20.out.2021/AFP

Às vezes ainda encontro pessoas que dizem que vivemos numa era digital, por isso deveríamos usar dinheiro digital. Mas nós já usamos! Como muitas pessoas, eu pago a maioria das coisas clicando num mouse, inserindo meu cartão de crédito ou apertando um botão no celular. Eu costumava guardar trocados na carteira para comprar frutas e legumes nas barracas de rua em Nova York, mas hoje em dia até elas aceitam cartões.

Todos esses pagamentos, entretanto, dependem da confiança em uma terceira parte. As pessoas aceitam cartões de débito, pagamento eletrônico etc porque eles estão ligados a uma conta bancária. Todo o objetivo da bitcoin, como explicado em seu documento original de 2008, era abolir a necessidade desse tipo de confiança: ela validaria os pagamentos usando métodos relacionados à criptografia —comunicação codificada. O objetivo era criar um sistema de pagamentos "entre pares", independente das instituições financeiras.

Mas como fazer isso? Os bancos são tão inconfiáveis? Estive em muitas reuniões em que os céticos da criptomoeda pediram, o mais respeitosamente possível, exemplos simples de coisas que podem ser feitas melhor ou mais barato com criptomoeda do que por outras formas de pagamento. Ainda não ouvi um exemplo claro que não envolva atividade ilegal —que, para ser justo, pode ser mais fácil de esconder se for usada criptomoeda.

A verdade é que embora a bitcoin exista há muito tempo pelos padrões da internet —13 anos!— ela e outras criptomoedas quase não fizeram incursões na função tradicional do dinheiro, como meio de troca usado para comprar bens e serviços. Números concretos são raros, mas parece que uma vasta maioria de transações em criptomoeda envolve especulação de mercado, e não os negócios comuns da vida.
Mas a bitcoin e suas rivais hoje têm um valor de mercado combinado de mais de US$ 1 trilhão (R$ 5,6 tri). O que os investidores pensam que estão comprando?

Uma resposta é proteção contra o eterno temor de que os governos inflem sua riqueza —como colocou um artigo recente da Bloomberg, alguns bilionários estão comprando cripto para o caso de o dinheiro "ir para o inferno". De fato, houve 57 hiperinflações no mundo, pelo que sabemos. No entanto, todas ocorreram em meio ao caos político e social; você realmente acha que num ambiente desse tipo conseguiria entrar online e sacar suas bitcoins?

Também há o medo de "perder a chance". A bitcoin atingiu uma espécie de ponto ideal: ela tem um ar high-tech e futurista, enquanto também atende à paranoia política. Os ganhos de capital resultantes levaram muitos investidores apolíticos a sentir que precisam entrar no jogo, enquanto também provavelmente induzem figuras públicas como Eric Adams, o novo prefeito de Nova York, a elogiar a bitcoin porque imaginam que isso os faz parecer avançados.

Mas as explicações confusas sobre a bitcoin significam que ela está destinada a implodir? Não necessariamente. Afinal, o ouro deixou de servir como meio de troca há gerações, mas seu valor não despencou. E não devemos descontar a importância da atividade ilegal. Há cerca de US$ 1,6 trilhão (R$ 9 tri) em notas de US$ 100 (R$ 563) em circulação —80% de toda a moeda americana—, apesar de ser muito difícil que consumidores comuns gastem notas de grande valor. O que você acha que as pessoas estão fazendo com todas as verdes de US$ 100?

Mas deixemos de lado as previsões do mercado e perguntemos o que há na aliança cada vez mais profunda entre a bitcoin e o movimento de Donald Trump "MAGA" —Make America Great Again.

A resposta, eu diria, é que a bitcoin deveria criar um sistema monetário que funcione sem confiança —e a direita moderna tem tudo a ver com promover a desconfiança. A Covid é um embuste; a eleição foi roubada; os incêndios florestais na Califórnia não têm nada a ver com a mudança climática, foram iniciados por lasers espaciais controlados por Rothschild.

Nesse contexto, é perfeitamente natural que os políticos trumpistas peçam o fim de um sistema monetário que funciona por meio dos bancos —sabemos quem os controla, certo?—​ e depende de uma moeda que é administrada por autoridades nomeadas pelo governo. Não há evidência de amplo abuso monetário, mas isso não importa para a extrema direita.

O ponto, então, é que embora haja questões econômicas reais associadas à criptomoeda, sua ascensão tem muito a ver com a loucura política generalizada que colocou a democracia americana à beira do precipício.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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