Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Armas, germes, bitcoins e a direita antissocial

Criptomoeda joga com a fantasia do individualismo autossuficiente, de proteger a família com sua arma e tratar a Covid com seu vermífugo

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Em fevereiro de 2021, um congelamento profundo causou amplas quedas de energia no Texas, deixando cerca de 10 milhões de moradores sem eletricidade, em muitos casos durante dias. Centenas de pessoas morreram.

A principal causa imediata da crise foi a interrupção da produção de gás natural, a principal fonte de energia do estado. Depois de uma temporada de frio congelante em 2011, os órgãos reguladores federais tinham pedido que o Texas exigisse a adaptação das instalações de gás e eletricidade para esse clima. Mas ele não o fez.

E de modo geral ainda não o fez. Até agora, nenhuma exigência de adaptação ao inverno foi imposta ao politicamente poderoso setor de gás. Em vez disso, o governador Greg Abbott espera garantir a rede elétrica incentivando a... mineração de bitcoins. Isso supostamente reduziria o risco de apagões porque o enorme consumo de eletricidade pela bitcoin acabaria expandindo a capacidade de geração do estado.

Pessoas passam por uma placa "Bitcoin Decentral" em Toronto, Canadá - Mark Blinch/Reuters

Sim, é tão maluco quanto parece. Mas se encaixa num padrão. Quando confrontado com problemas que poderiam ser facilmente atenuados por ações cooperativas, os radicais de direita que dominaram o Partido Republicano costumam recorrer a não-soluções bizarras que agradam à sua ideologia antissocial. Vou explicar por que uso essa palavra em um minuto.

Primeiro, vamos falar sobre o mais óbvio exemplo atual: a política da Covid. Na Flórida, o governador Ron DeSantis tentou bloquear praticamente todas as medidas destinadas a limitar a disseminação do coronavírus; ele e seus assessores quase chegaram a ser explicitamente contra as vacinas, mas eles agradaram à turma "antivax", com DeSantis até se recusando a dizer se recebeu a dose de reforço.

No entanto, todos eles aprovaram tratamentos com anticorpos que são muito mais caros que as vacinas, e DeSantis pediu que a Agência de Alimentos e Drogas permitisse o uso de anticorpos que, como o órgão descobriu, não funcionam contra a ômicron.

Por que eles apoiam tratamentos caros e ineficazes enquanto se opõem a medidas que ajudariam a evitar a doença severa, para começar? Bem, considere um paralelo que talvez não seja imediatamente óbvio, mas na verdade está bastante próximo: os tiroteios nas escolas.

Entre os maiores países avançados, esses tiroteios são um fenômeno quase exclusivamente americano. E embora possa haver diversas razões para que os Estados Unidos liderem o mundo em massacres escolares, certamente poderíamos mitigar o horror com medidas de bom senso como restrições à venda de armas, verificação de ficha policial e proibição de armas de assalto para pessoas físicas.

Mas não. Os republicanos querem expandir o acesso às armas e, em muitos estados, proteger os estudantes armando os professores.

O que esses exemplos têm em comum? Como poderia ter dito Thomas Hobbes, os seres humanos só podem florescer, só podem evitar um estado da natureza em que as vidas são "desagradáveis, brutais e curtas", se eles participarem de uma "comunidade" —uma sociedade em que o governo assume grande parte da responsabilidade por tornar a vida segura. Portanto, temos a polícia exatamente para que os indivíduos não precisem andar por aí armados para se protegerem da violência de outras pessoas.

A política de saúde pública, se você pensar, reflete o mesmo princípio. Os indivíduos podem e devem assumir a responsabilidade por sua própria saúde, quando puderem; mas a natureza da doença infecciosa faz que a ação coletiva tenha um papel essencial, seja em investimento público em suprimentos de água limpa ou, sim, exigências de máscaras e vacinas durante uma pandemia.

E você não precisa ser socialista para reconhecer a necessidade de regulamentação para manter a confiabilidade de aspectos essenciais da economia, como o abastecimento de eletricidade e o sistema monetário.

E é por isso que estou chamando a direita americana moderna de antissocial —porque seus membros recusam qualquer política que dependa da cooperação social, e em vez disso querem que voltemos ao estado de natureza distópico de Hobbes. Nós não vamos tentar manter as armas longe de potenciais assassinos em massa; em vez disso, vamos contar com professores-vigilantes para atirar neles depois que o tiroteio tiver começado. Não vamos tentar limitar a disseminação das doenças infecciosas; vamos dizer às pessoas para tomarem drogas que são caras, ineficazes ou ambas, depois que elas já estiverem doentes.

E a bitcoin? Não acho que valha a pena tentar entender a lógica tortuosa de Abbott —por que ele imagina que promover uma indústria que devora energia, ambientalmente destrutiva, de alguma forma tornará mais confiável o suprimento de eletricidade em seu estado? (Uma rede energética sobrecarregada por criptomineração ajudou a provocar uma crise recente no Cazaquistão.)

Uma pergunta melhor é por que os republicanos se tornaram fanáticos pela criptomoeda, a ponto de um candidato ao Senado definir sua posição como sendo "pró-Deus, pró-família, pró-bitcoin"? A resposta, eu diria, é que a bitcoin joga com uma fantasia de individualismo autossuficiente, de proteger sua família com seu AR-15 pessoal, tratar sua Covid com um vermífugo ou urina e administrar seus negócios financeiros com moeda criada em nível privado, imune a instituições como governos ou bancos.

Afinal, nada disso vai funcionar. O governo existe por um motivo. Mas os constantes ataques da direita às funções essenciais do governo cobrarão um preço, tornando nossas vidas mais desagradáveis, mais brutais e mais curtas.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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