Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Quando 'liberdade' significa o direito de destruir

Pessoas que retrataram o Black Lives Matter como ameaça estão deliciadas com protestos antivacina no Canadá

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No domingo (13), a polícia canadense finalmente dispersou os manifestantes antivacina que bloqueavam a Ponte Ambassador, entre Detroit (EUA) e Windsor (Canadá), uma rota comercial importante por onde normalmente passam mais de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão) em comércio internacional diário. Outras pontes continuam fechadas, e parte de Ottawa, a capital canadense, ainda está ocupada.

A hesitação das autoridades canadenses diante dessa disrupção foi alarmante aos olhos dos americanos. Também alarmante, embora não surpreendente de fato, foi o uso do vandalismo econômico e da intimidação por grande parte da direita americana —especialmente pessoas que criticaram as manifestações em favor da justiça racial. O que estamos vendo aqui é uma lição objetiva sobre o que algumas pessoas realmente querem dizer quando falam em "lei e ordem".

Vamos falar sobre o que está acontecendo no Canadá e por que eu chamo isso de vandalismo.

Manifestantes do 'Comboio da Liberdade' bloqueiam ruas diante do Parlamento canadense, em Ottawa - Ed Jones/AFP

O "Comboio da Liberdade" foi divulgado como uma reação dos caminhoneiros irritados com a vacinação obrigatória contra a Covid-19. Na realidade, não parece haver muitos caminhoneiros entre os manifestantes na ponte (cerca de 90% dos caminhoneiros canadenses estão vacinados). Na semana passada, um repórter da agência Bloomberg viu apenas três carretas entre os veículos que bloqueavam a Ponte Ambassador, que eram na maioria caminhonetes e carros particulares; fotos tiradas no sábado também mostram muito poucos caminhões comerciais.

O sindicato Teamsters, que representa muitos caminhoneiros dos dois lados da fronteira, denunciou o bloqueio.

Portanto, esse não é um levante da base dos caminhoneiros. É mais como um 6 de janeiro em câmera lenta, uma disrupção causada por um número relativamente pequeno de ativistas, muitos deles extremistas de direita. Em seu pico, as manifestações em Ottawa supostamente envolveram apenas cerca de 8.000 pessoas, enquanto os números em outros locais foram muito menores.

Apesar de seu pequeno número, porém, os manifestantes estão infligindo um volume notável de prejuízos econômicos. As economias dos Estados Unidos e do Canadá são estreitamente integradas. Em particular, a indústria fabril norte-americana, especialmente mas não somente a de automóveis, conta com um fluxo constante de peças entre fábricas dos dois lados da fronteira. Em consequência, a interrupção desse fluxo atrapalhou a indústria, forçando cortes na produção e até o fechamento de fábricas.

O bloqueio da Ponte Ambassador também gerou grandes custos indiretos, pois os caminhões são desviados para rotas secundárias e obrigados a esperar em longas filas em pontes alternativas.

Qualquer tentativa de definir um número para os custos econômicos do bloqueio é enganosa e especulativa. No entanto, não é difícil chegar a números como US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão) ou mais por dia; combine isso com a disrupção em Ottawa, e os protestos de "caminhoneiros" já podem ter infligido prejuízos econômicos de alguns bilhões de dólares.

É um número interessante, porque é aproximadamente comparável às estimativas da indústria de seguros sobre as perdas totais associadas aos protestos do Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd —protestos que parecem ter envolvido mais de 15 milhões de pessoas.

Essa comparação sem dúvida surpreenderá os que obtêm suas notícias da mídia de direita, que retratou o movimento como uma orgia de saques e incêndios criminosos. Eu ainda recebo emails de pessoas que acreditam que grande parte da cidade de Nova York foi reduzida a ruínas fumegantes. Na verdade, as manifestações foram notavelmente não violentas; houve vandalismo em poucos casos, mas foi relativamente raro, e o dano foi pequeno considerando o tamanho enorme dos protestos.

Em contraste, causar danos econômicos foi e é simplesmente do que tratam os protestos no Canadá —porque bloquear fluxos de bens essenciais, ameaçando o ganha-pão de pessoas, é exatamente tão destrutivo quanto quebrar uma vitrine de loja. E ao contrário de, por exemplo, uma greve contra uma determinada empresa, esse dano coube indiscriminadamente a qualquer pessoa que tivesse o infortúnio de depender do livre comércio.

E com que finalidade? As manifestações do Black Lives Matter foram uma reação ao assassinato de pessoas inocentes pela polícia; o que está acontecendo no Canadá é, aparentemente, sobre rejeitar medidas de saúde pública destinadas a salvar vidas. É claro, até isso é principalmente uma desculpa: é na verdade uma tentativa de explorar o cansaço da pandemia para reforçar a habitual agenda da guerra cultural.

Como se poderia esperar, a direita americana está adorando isso. Pessoas que retrataram protestos pacíficos contra mortes praticadas pela polícia como uma ameaça existencial estão deliciadas com o espetáculo de ativistas de direita infringindo a lei e destruindo riqueza. A Fox News dedicou muitas horas à cobertura elogiosa dos bloqueios e ocupações. O senador Rand Paul, que chamou os ativistas do Black Lives Matter de "turba enlouquecida", pediu protestos no estilo do Canadá para "congestionar as cidades" dos Estados Unidos, especificamente dizendo que esperava ver caminhoneiros perturbando a final do campeonato de futebol, o Super Bowl (eles não fizeram isso).

Suponho que a reabertura da Ponte Ambassador seja o início de uma repressão mais ampla a protestos destrutivos. Mas espero que não esqueçamos este momento — e em particular que nos lembremos dele na próxima vez que um político ou alguma figura da mídia falar em "lei e ordem".

Os acontecimentos recentes confirmaram o que muitos suspeitavam: a direita fica perfeitamente à vontade, na verdade entusiasmada, com atos ilegais e desordem, desde que sirvam aos fins da direita.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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