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Guerra de sacolés adia o fim do mundo na Cidade de Deus

Jovens das favelas criam novas formas de diversão diante do descaso do Estado

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Por Salvino Oliveira

Passou a semana inteira esperando por aquele dia, comia o mais depressa possível. O céu se estendia de norte a sul sem uma nuvem sequer, fazia uns 40 graus, era o dia perfeito para o combate. Aquela ansiedade que tomava conta do nosso protagonista também invadirá pelo menos cem outros jovens em todos os cantos da Cidade de Deus.

Após o almoço, como de costume, era obrigado a descansar por 20 minutos, os minutos mais longos de sua vida. A hora simplesmente não passava, um tique-taque infinito. Por fim, o bendito do relógio finalizou a contagem, e em um movimento súbito se despediu da mãe com um beijo e foi ao encontro dos outros camaradas.

Em um primeiro momento, a massa de mais de cem jovens poderia parecer bastante desorganizada. Mas aquela organização faria inveja até mesmo aos participantes do Concílio de Niceia na fundação do cristianismo. A todo momento alguém criava uma regra; não podia isso nem aquilo. Por fim, decidiram um horário. O tal combate ficou marcado para as 15h.

As duas equipes tinham uns 40 minutos para se preparar, corriam contra o tempo. Uma dupla foi incumbida de comprar os materiais, enquanto os outros ficaram responsáveis pela estratégia de ataque. A molecada não estava de brincadeira. Debatiam sobre quem do outro time seria o guardião dos equipamentos adversários —se conseguissem pegar essa pessoa a vitória estava praticamente garantida.

Menina brinca com copo e água em rua da Cidade de Deus, no Rio; ao fundo, um menino corre
Menina brinca em rua da Cidade de Deus, no Rio - Christophe Simon - 31.mar.13/AFP

O local da batalha, a Cidade de Deus, é uma favela plana localizada na zona oeste carioca e carrega uma história tão grande quanto seus combatentes. Por ali já passaram figuras com MV Bill, Cidinho e Doca, Caetano Veloso, Tati Quebra Barraco e até mesmo o ex-presidente americano Barack Obama. Aqueles jovens carregavam o peso de um local mundialmente famoso e eternizado na obra de Paulo Lins. 

O relógio marcava três da tarde, mas, como todo bom carioca, aquela garotada estava longe de finalizar os preparativos. E, quanto mais tempo demoravam, mais a notícia se espalhava e mais jovens vinham se apresentar para o combate. Era extraordinário. Por fim, um mensageiro do grupo rival vinha avisar que o prazo havia se esgotado e exigia a presença deles no campo de batalha.

Assim como em uma boa epopeia, uma senhora veio advertir aqueles jovens sobre os perigos que iriam enfrentar, rogava para que visitassem uma igreja. Em vão. Logo os dois grupos se encontraram em uma das ruas do bairro, uma imagem que remonta à tão famosa cena do filme do Fernando Meirelles. A tensão tomava conta do lugar, respiração pesada, um silêncio absoluto, até mesmo os transeuntes foram dominados por aquele sentimento.

 

O silêncio foi cortado quando um vira-lata caramelo latiu para um dos meninos mascarados. Nesse momento alguém gritou “É guerra” e, de repente, em uma cena que parecia ter sido tirada de filmes sobre batalhas medievais: centenas de sacos de sacolés preenchidos com água eram arremessados de ambos os lados. Caos. Correria.

Aquela brincadeira durou o dia inteiro —foram centenas, talvez milhares de sacos d’água arremessados em todos os lugares.

O acesso ao lazer é um direito social assegurado constitucionalmente a todos os cidadãos. Contudo os setores populares e a população favelada estão longe da satisfação deste direito —que, por sua vez, deveria ser proporcionado pelo Estado a todas as camadas sociais. Os jovens desses locais, com toda sua energia e vivacidade, têm encontrado formas de burlar as intempéries da vida e garantir de forma autônoma o acesso ao lazer. A cada verão, uma nova moda é criada por eles.

Em anos passados, além das idas de “bonde” para a praia, foram criados eventos como os rolezinhos, criminalizados por uma elite que se recusa a enxergar esses jovens como agentes portadores de direitos. Tornou-se imagem comum no Rio a abordagem policial aos ônibus vindos da zona norte em direção às praias da zona sul. Seus atos, suas iniciativas e suas criações são recorrentemente criminalizados. 

Neste verão, a forma de entretenimento foi a guerra de sacolés, iniciativa que se espalhou pelas favelas cariocas e chegou ao interior do estado e à região dos Lagos. Ato espontâneo criado para driblar o calor da cidade e o alto custo de locomoção. A juventude periférica continua se reinventando frente às desigualdades

Na cidade do Rio de Janeiro, a desigualdade talvez seja ainda mais gritante. Dados do Instituto Pereira Passos (IPP) mostram o tamanho dessa lacuna. Enquanto o bairro da Gávea, zona sul da cidade, tem 16 mil moradores e três equipamentos municipais de cultura, a Cidade de Deus conta com quase 40 mil moradores e nenhum equipamento de cultura municipal.

A criminalização do território é uma realidade, uma vez que as pessoas que moram nesses ambientes são vistas meramente como parte de uma rede ou contexto que é ameaçador para o conjunto da cidade, incapazes de produzir cultura e gerar conhecimento, o que demonstra a falta de investimento e de possibilidades de ascensão social oferecidas aos moradores de favelas. Nesse cenário de descaso e abandono, os jovens procuram efetivar o direito ao lazer e à cultura de forma autônoma.

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