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Mortes negras importam?

Construção imagética da violência produz narrativas que podem reduzir povo preto às violências sofridas

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Por Marcelo Rocha e Matheus Alves

Por que os corpos negros só se tornam relevantes quando alguma tragédia acontece?

A imagem consegue por si só contar inúmeras histórias, que nos ensinam e nos forjam dentro de uma estrutura social. Pensar o modo que temos vivido se dá em uma busca constante por conteúdos visuais, somados a uma defasagem educacional gigante e proposital em nosso país. Desde o fim de maio, circulam por todo o mundo imagens do assassinato de George Floyd, causando uma grande onda de denúncias de violência policial e ações de promoção de causas ligadas ao assunto. A questão que se levanta com tal movimento é o que de fato importa: as vidas ou as mortes negras?

Durante os meses de junho e julho, vários veículos de mídia expandiram os debates sobre as questões raciais em seus editoriais, capas e artigos, na busca de suprir violências de mais de 400 anos de extermínio. Fato que tem sua importância no contexto histórico, porém se dá mais uma vez após momentos de violência, repetindo uma estrutura de banalização do mal, pois os casos seguintes se tornaram apenas virais na internet —como, na cidade de São Paulo, a comerciante de 51 anos que teve seu pescoço pisoteado pelo soldado da Polícia Militar João Paulo Servato durante uma abordagem.

Sabemos que a base da nossa educação é a imagem. Partindo disso, essa construção imagética da violência produz narrativas que por muitas vezes reduz as ações do povo preto às violências sofridas, enquanto processo de documentação. A pesquisadora norte-americana bell hooks, em seu livro “Olhares Negros, Raça e Representação”, faz uma síntese de como essas imagens reforçam a violência, pois não criam outras possibilidades concretas para esse povo e o condiciona a violência, fato que a repercussão da imagem no Brasil, causa um efeito reverso, reproduzindo as ações praticadas. Pensar que a imagem de um policial sufocando um homem negro nos EUA fora reproduzida quase que integralmente por um outro policial no Brasil nos deixa com a reflexão de que isso pode ser uma demonstração de identidade com a violência praticada contra corpos negros.


Compreender a importância da valorização das vidas negras se faz necessário não apenas quando uma delas é perdida ou colocada em situação de vulnerabilidade. É algo que precisa ser construído cotidianamente através da promoção da cultura e da diversidade do povo, da inserção destes em espaços de criação de narrativas e decisão política e editorial. A construção da documentação do povo preto precisa considerar os mais diversos pontos de vista, inclusive sua própria história, como nos provoca a filósofa Sueli Carneiro sobre essa urgente tarefa de manter o pensamento negro vivo.

Há de lembrar que as imagens desde o período colonial têm um papel de manutenção da supremacia branca no Brasil, que, apesar de sempre ter existido, agora demonstra sua faceta de forma mais explícita através de ações de extermínio. Ao olharmos toda a história brasileira nos museus e galerias, as únicas formas de representação negra ainda reproduzem essas violências estruturais. Se fazem necessárias alternativas que ultrapassem este lugar de denúncia, mas que construa também narrativas de futuro para as pessoas pretas —vide o trabalho e esforço que tem sido levantado pelos movimentos negros, como o MNU e o Ilê Aiyê, nos anos 70, com a apropriação e ressignificação de termos e figuras para a promoção da autoestima negra nos mais diversos segmentos da sociedade, como na arte e na política.

Façamos memória das potências negras que já nos deixaram, e que seguem construindo narrativas de transformação, como a própria vereadora Marielle Franco nos alertou pouco antes de ser assassinada: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Esta frase não fala apenas sobre contar corpos, mas sobre a construção de um projeto de manutenção das vidas negras, em que a necropolítica que a supremacia branca nos determina não seja condicionante da forma que vivemos.

É necessário um processo de ruptura com a normalização dessas mortes que não parta apenas do lugar momentâneo, mas da construção efetiva de processos de reestruturação social, que sejam interseccionais, como tem sido a lei federal de nº 10.639/2003 para a educação brasileira, em todos os outros espaços de poder, uma derrubada das estruturas coloniais que ainda se mantém de pé.

A falácia da democracia racial é grande responsável por promover este sentimento de cooperação e exclui a necessidade de entender a importância de os olhares pretos estamparem de forma positiva os espaços de mídia e os imaginários da sociedade. Por isso, é essencial que haja investimento e reconhecimento, para que seja efetivado os esforços promovidos por artistas, ativistas e tantas outras figuras negras. Onde possam ocupar espaços na sociedade durante suas vidas. Aqui podemos citar trabalhos como do jovem fotógrafo alagoano Marcelino Melo “Nenê”, 25, que tem documentado de outra forma territórios marcados pela violência na região do Campo Limpo, ou mesmo o do antropólogo Hélio Menezes, 34, através de suas curadorias em espaços das artes, buscando ressignificar as identidades negras em exposições de obras produzidas por artistas negros. Ou, como os dois jovens negros que assinam este artigo —que facilmente poderiam ser manchetes sobre mais um extermínio do estado.



Marcelo Rocha, 22, é fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, graduando em Ciências Sociais, foi curador das mostras “Humano Cidade: Olhares além da medida” e “QUEBRADA: São Paulo, na visão dos cria”. Cria da cidade de Mauá, São Paulo.

Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo concurso fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019.

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