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Representatividade evangélica: entre a bancada e os fiéis

Falta de nomes negros evangélicos no Congresso mostra que plano de poder não tem a ver com religião ou fé

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Por Jackson Augusto e João Bigon

Após a decisão da Suprema Corte estadunidense sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo em 2015 e também das manifestações em 2016 dos protestos "Oscars so white", a palavra "representatividade" tem despontado na mídia e no mercado cultural.

Atrelada muitas vezes à ideia de empoderamento, outra palavra do "hype", representatividade consiste basicamente em visibilizar e/ou dar voz a grupos sociais minoritários que são historicamente silenciados. Não demorou para esse debate chegar ao Brasil e trazer consigo a problemática da representatividade na política partidária.

Assim como nos EUA, aqui no Brasil o debate sobre representatividade na política e a invisibilização de minorias possuía duas faces: 1. A dimensão violenta que esse silenciamento político fruto da invisibilidade trazia para os grupos minoritários; 2. A expressividade que grupos conservadores, sobretudo religiosos, tinham na esfera macro da política.

Em 2013, o deputado federal pastor Marco Feliciano (PSC), dividindo uma mesa de debate com o então deputado Jean Wyllys (PSOL) sobre o documentário "Mais Náufrago que Navegantes", alegou haver um ataque ao cristianismo no Brasil e que ele fazia parte dessa comunidade atacada.

Na mesma semana, o pastor deputado havia participado de uma marcha evangélica organizada pelo pastor Silas Malafaia onde ocorreram diversos ataques à comunidade LGBT. Naquele contexto, Jean era o maior símbolo da luta LGBT na Câmara.

O Brasil, a partir daquele ano, passou a ver uma fissura outrora invisível ou pelo menos invisibilizada, que revelava o caráter excludente da política nacional. Indo além, podemos dizer que não só excludente, mas também antagônica. Parecia que a maioria dos representantes do povo brasileiro defendia valores bem específicos e estava legislando apenas para um grupo. E muitas vezes essa defesa se sustentava a partir dos ataques feitos aos grupos que não eram alinhados ideologicamente a esses representantes.

Ao que parece, aquela velha máxima brasileira de que "religião e política não se discutem" gerou uma esquizofrenia social de gravidade bem séria. A formação da Frente Parlamentar Evangélica, um resultado de anos de investimento midiático e fomento de uma cultura popular neopentecostal nas favelas e periferias, segundo pensadores e pensadoras como Nilza Valéria Zacarias, Ariovaldo Ramos e Ricardo Mariano, é apenas uma parte do abismo social que existe na política de representação no Brasil. Sobretudo quando ampliamos e aprofundamos os olhares sobre isso.

A Frente Parlamentar Evangélica aliou-se a outras duas bancadas, chamadas de Bancada da Bala e Bancada do Boi. Assim, mais precisamente em 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil teve seu primeiro contato direto com a Bancada BBB (bala, boi e bíblia), quando uma maioria de homens brancos e ricos, militares, pastores e/ou fazendeiros, declararam seus votos contra a então presidenta eleita, em nome de "Deus, da família e da moral". Este arranjo político silencioso unificou três setores que estão em operação plena no país desde sua fundação colonial: latifundiários, forças de vigilância e militarização da vida e os setores religiosos fundamentalistas cristãos.

Se você abrir um livro de História do Brasil, encontrará essas três forças revezando suas influências na organização social e política do país desde o século 16. São esses setores que, lentamente, desde o processo de redemocratização, culminando com o atual governo de Jair Messias Bolsonaro, vêm operando no cenário político brasileiro. Seja silenciosamente, mas também aos berros, como o famoso pastor evangélico Silas Malafaia.

Mas, para um olhar mais cuidadoso, nota-se facilmente o abismo que há entre a vivências do povo evangélico diante de seus supostos representantes, e aí surge o questionamento: e o povo diante de tudo isso?

A frase "o diabo mora nos detalhes" nunca foi tão alinhada a um assunto. Em reportagem de outubro de 2018, a Folha de S.Paulo trouxe à tona informações interessantes sobre o presidente Bolsonaro. Jair é um homem declaradamente católico, mas que apela para signos e linguagens diretamente ligados ao universo evangélico quase cotidianamente.

O presidente menciona versículos muito citados na cultura gospel, se batizou no rio Jordão pelas mãos de um pastor evangélico, é extremamente presente em cerimônias religiosas das mais diversas igrejas e possui um vínculo íntimo com grandes nomes do mundo evangélico brasileiro. A presença de Bolsonaro na mentalidade evangélica é quase onipresente, pois ele não precisou se converter nem frequentar bancos de nenhuma igreja para que os fiéis o identificassem como um possível representante de suas pautas.

Assim, apoiado direta ou indiretamente por diversas lideranças desse segmento, o presidente tem uma base de apoio que mistura pautas conservadoras com pautas teoricamente progressistas, como a ministra Damares reivindicando um suposto engajamento social das mulheres ainda que com ares de um conservadorismo dos anos 1950.

Temos também os casos de Sérgio Camargo, nomeado como presidente da Fundação Palmares e que chamou o movimento negro de “escória maldita”, de Ysani Kalapalo, que é integrante do povo Kalapalo, da Terra Indígena do Xingu, que participou da comitiva do presidente na Assembleia Geral da ONU, de Hélio "Bolsonaro" Lopes, eleito o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, e recentemente do ex-ministro da educação Carlos Decotelli. Todos os casos apontam para o lugar da representatividade na sociedade brasileira e sua função de legitimar pautas que não representam a realidade dos grupos sociais a que esses representantes pertencem.

Quando olhamos para a bancada evangélica e para os eleitores evangélicos, conseguimos ver essa disparidade. De acordo com os dados do Tribunal Superior de Eleitoral de 2018, a bancada evangélica é formada em sua maioria por pessoas brancas, enquanto pesquisa Datafolha de 2019 mostra que 59% dos evangélicos no Brasil são negros.

Isso acaba atingindo um grande fato do evangelicalismo brasileiro: fiéis negros, representantes brancos. Essa narrativa de representatividade que parte da Frente Parlamentar evangélica assumiu é forjada a partir de um lugar de silenciamento e invisibilização dos negros e negras dentro das igrejas evangélicas quando se trata de tomada de decisão.

A representatividade negra, quando desprovida de políticas sociais que de fato representem as dores, anseios e lutas do povo negro e periférico, não é legítima. Representatividade não é somente a ocupação de um corpo despolitizado em cargo de poder, mas sim um corpo humanizado a partir de um posicionamento contra todas as demandas que se levantaram na história do Brasil contra a população negra e das favelas.

A bancada evangélica brasileira expõe em sua máxima capacidade um projeto contra os próprios evangélicos e evangélicas, quando atuam em favor da militarização cada vez mais violenta do Estado dentro das favelas do Brasil, quando se cala diante de uma política que vai encarcerar os filhos das mães negras que vão na igreja durante a semana orar por eles.

A falta de nomes negros evangélicos dentro do Congresso Nacional mostra que o plano de poder evangélico não tem a ver com religião ou fé —é um plano político e socioeconômico que envolve em sua maioria homens brancos, é o retrato do país que exerce entre os brancos e ricos a sua supremacia, forjada desde a escravidão nos tempos coloniais.

O projeto bolsonarista afirma que a supremacia branca brasileira até admite pessoas negras, mas com o objetivo de manter o pacto de poder entre as instituições. As políticas públicas defendidas por esse projeto não conseguem dialogar com a realidade das periferias brasileiras —crianças negras são assassinadas, relações trabalhistas em tempos pandêmicos colocam as empregadas domésticas em risco de vida em prol da manutenção das relações constituídas entre as pessoas na sociedade.

A igreja evangélica, que em sua maioria é negra e feminina, tem representantes brancos e masculinos. Ou seja, o projeto político de aparelhamento da religião no país cumpre uma agenda identitária a partir da supremacia brasileira.

A representação dentro do governo bolsonaro diz que o problema da representatividade não está no indivíduo deslocado da estrutura e da agenda que ele tem. Representatividade importa no sentido amplo e coletivo, através também da ocupação de pessoas negras em todas as instâncias de poder neste país —dentro ou fora da igreja, nos órgãos públicos ou privados—, porém ela acontece de fato a partir das demandas coletivas desse grupo representado, a partir de uma agenda de políticas públicas e de investimento de recursos.

Que a igreja evangélica brasileira seja representada em todos os campos a partir das demandas dos negros e das mulheres, que a periferia tenha voz —não de forma individualizada, mas a partir de um projeto de sociedade e igreja que não silencie as pessoas que constroem esse país.


Jackson Augusto é um jovem batista que integra a Coordenação Nacional do Movimento Negro Evangélico do Brasil. É membro do Colegiado Nacional do Miqueias Brasil, articulador social no Usina de Valores, produtor de conteúdo no projeto Afrocrente e ativista da teologia negra no Brasil.

João Marcos Bigon, jovem negro vivo de 27 anos, cria da Baixada Fluminense, professor de história e filosofia, mestrando em relações étnico-raciais, pesquisador de masculinidades, educador social e produtor de conteúdo digital.

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