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Recordar é preciso

Para assegurar direito ao futuro, preservação e transmissão da memória negra são desafios do presente

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Por Maria Júlia Ananias

A construção de um projeto de país passa por escolhas conscientes sobre quais relações, narrativas e sujeitos devem ser preservados e perpetuados, uma vez considerados relevantes no presente e dignos de rememoração no futuro. Decide-se, também, quem é passível de invisibilização, desprezando trajetórias e a importância de pessoas e comunidades inteiras nos múltiplos processos sociais, culturais, políticos e econômicos. Apesar de serem capazes de lembrar e esquecer como todo ser humano, essas pessoas têm suas possibilidades de criar e compartilhar memória, tanto pessoal quanto coletiva, continuamente destruídas.

As classes dominantes, sob o legado da colonização e escravização, se utilizam do apagamento e da fragmentação para impedir que certos grupos sociais –nós sabemos bem quais– acessem o passado, vivam plenamente o presente e criem perspectivas de futuro por meio da construção da memória coletiva. Revelando, assim, mais uma expressão do racismo e da violência que tanto marcam as vidas negras.

A memória negra, diante do seu não reconhecimento, se choca com uma memória social do Brasil demasiado branca, patriarcal, heteronormativa e elitista, incompatível com a realidade da maioria. Não se pode negar –ainda que alguns insistam no contrário– que a formação do nosso país se deu atravessada pela naturalização e legitimação de valores e práticas da dominação colonial e escravocrata.

Ao longo desse processo, o esquecimento passou a ser empregado pelo próprio Estado enquanto um modo de exercício do poder que seleciona o que serve à manutenção de determinados interesses e privilégios, e omite o protagonismo daqueles e daquelas que ousaram se levantar contra a exploração e a exclusão, afirmando que outras formas de vida e sociedade mais justas e igualitárias eram, e continuam sendo, possíveis.

Após o assassinato de George Floyd, as manifestações antirracistas transnacionais nos mostraram que a disputa pelo passado, seus símbolos e suas figuras históricas constitui parte importante das transformações sociais que visam, entre tantas coisas, a superação das desigualdades raciais. Temos visto, cada vez mais, que o distanciamento entre a memória coletiva negra e a narrativa unilateral, predominantemente transmitida nos processos e meios de socialização (família, escola, igreja, trabalho, Estado, meios de comunicação etc), dificulta que o combate ao racismo e a promoção da igualdade racial tomem o centro do debate público de forma permanente e limita os avanços em direção a uma agenda política verdadeiramente antirracista. Logo, para muitas e muitos de nós, o acesso à memória, além de um direito, se tornou uma ferramenta de resistência e luta do tempo presente.

Em "Poemas da Recordação e Outros Movimentos", Conceição Evaristo nos reconta as histórias e vivências de uma linhagem de mulheres negras –bisavós, avós, mães e filhas. Com sensibilidade e potência, sem perder o caráter de profunda crítica social, a autora nos mostra que essas figuras são essenciais para o resgate, a preservação e a projeção da memória nas gerações futuras. Ela afirma, no título e verso do poema que abre a obra, que “recordar é preciso”, que através do olhar das vidas submetidas ao apagamento se desenvolvem contranarrativas que contestam a memória e história “oficial”.

É fundamental desconstruir a ideia de falsa unidade e reconciliação embasada no mito da democracia racial, e questionar essa memória que perpetua um imaginário colonialista. Nesse sentido, nos movimentamos para propagar as narrativas e memórias de coletividades e territórios marginalizados por quem tradicionalmente detém e exerce o poder –do povo negro e povos indígenas, das mulheres, LGBTs, imigrantes, dos quilombos, periferias e favelas. Valorizamos os caminhos que foram abertos, com muita luta, por quem veio antes e nos engajamos na elaboração de projetos alternativos de sociedade, feitos por e para todas e todos que trabalham cotidianamente para sustentar o Brasil.

Para as instituições e organizações sociais, culturais e políticas, coloca-se, com urgência, a tarefa de contribuir para a preservação das inúmeras formas de recordação e registro das experiências negras —história oral, material audiovisual, textos literários, coleções pessoais, acervos do ativismo negro etc. Algumas iniciativas já existem com esse propósito, como o projeto de recuperação da memória e história de ativistas e organizações negras, desenvolvido a partir da parceria entre o Afro/Cebrap – Núcleo de Pesquisa e Formação em Gênero, Raça e Justiça Racial, e o Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Unicamp.

Aqui, o ato de recordar não tem como objetivo reproduzir integralmente ou mudar as consequências de eventos passados no presente, inclusive porque muitos conflitos seguem abertos, mas sim explicitar a conexão entre injustiças passadas e desigualdades contemporâneas e, principalmente, manter vivas e visíveis as muitas vivências do povo negro.

Encaramos o desafio de resistir não só ao extermínio dos corpos negros pela violência policial e do Estado, mas também à destruição da vida negra no âmbito da memória ao sermos impedidos(as) de transmitir lembranças, saberes e práticas. Como Mário Medeiros bem escreveu, lutamos contra a “dupla morte”. Ter a possibilidade de intercambiar experiências e criar relações intergeracionais significa preservar a existência negra, um empreendimento de implicações profundamente políticas.

Diante disso, é tempo de dar maior visibilidade às narrativas contra-hegemônicas que vêm sendo construídas, sobretudo pela juventude. É preciso reconhecer e valorizar as contribuições que foram e são feitas por pessoas negras nas mais diversas áreas e romper com a normalização de vidas negras estritamente reduzidas a processos de violência. A luta por transformações radicais de ordem coletiva, que vençam o colonialismo e seus efeitos simbólicos e materiais, passa, necessariamente, pelo reconhecimento da nossa humanidade –um passo imprescindível para a concretização de um novo mundo no qual nós, negras e negros, possamos nos ver e sermos vistos enquanto referências positivas. Passou da hora de termos nosso direito ao passado, presente e futuro garantido.


Maria Júlia Ananias é graduanda em ciências sociais na USP, assistente de pesquisa no Afro/Cebrap e constrói o coletivo de juventude Afronte.

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