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Fiquem em casa! Que casa?

Brasil despejou mais de 6.000 famílias durante a pandemia, segundo mapeamento

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por Jessica Soares, Leonardo Batista e Thuane Nascimento

Com o advento da pandemia da Covid-19 e a necessidade do isolamento social, um dos direitos básicos e fundamentais do ser humano passou a ser evidenciado: a moradia. Habitar um lugar seguro, limpo e estável revela-se uma das maiores demandas sociais brasileiras, ainda mais indispensável nos últimos meses.

Fato é que, para a maior parte da população brasileira, o direito à moradia nunca foi ofertado pelo Estado, de forma planejada e plena, que desse conta da nossa realidade e organização de vida. Em função da atuação institucional visivelmente pautada pelo racismo, a população negra, pobre e favelada desse país se auto-organizou nos territórios, ocupando terrenos, subindo tijolos, cedendo as lajes e levantando barracos. O Estado brasileiro é um grande agente de violações, tanto através de intervenções como de omissões. As diversas faces da negligência do poder público que acometem as populações mais vulneráveis durante a pandemia ilustram bem esse quadro.

Enquanto o isolamento social é uma das recomendações dos órgãos de saúde, no Brasil, de acordo com o mapeamento realizado pela Campanha Despejo Zero, que reúne movimentos por moradia, foram contabilizados, até 31 de agosto, o absurdo número de, ao menos, 6.373 famílias despejadas e outras 18.840 ameaçadas de remoção durante a pandemia. A onda de despejos evidencia exatamente o exercício da soberania –no caso, atuação do poder Judiciário como causador de violações de direitos fundamentais, obrigando famílias a irem para as ruas, e usando de violência policial para tal– relacionada à revelia do poder estatal ao fazer morrer e/ou deixar viver as populações mais vulneráveis.

Enquanto os poderes Legislativo e Executivo têm como política pública a omissão em relação à efetivação do direito à habitação daqueles que ocupam a zona do não ser (conceito cunhado por Frantz Fanon em "Pele Negra, Máscaras Brancas", que a define como “uma região extraordinariamente estéril e árida” habitada pelo negro, fixado ali pelo olhar imperial do branco), a intervenção estatal por meio do seu sistema de Justiça se mostra essencial para a manutenção individualista do interesse dos grandes proprietários.

A partir disso, observe-se que, para o Estado e para o mercado, a propriedade é preservada com a função exclusiva de manter latifúndios e concentração de terra na mão dos privilegiados. A propósito, o sistema de Justiça desempenha um papel decisivo na manutenção do modelo vigente de desenvolvimento, definido pela especulação imobiliária e concentração fundiária.

Vale ressaltar que o Poder Judiciário tem sido um dos principais instrumentos para efetivar a exclusão dessa parcela da população do acesso à terra. Nesse contexto, a judicialização dos conflitos possessórios é extremamente problemática, visto que transfere ao Poder Judiciário a responsabilidade pelas políticas públicas esquecidas aos olhos de outros poderes que regem o Estado.

Enquanto a solidariedade é o elemento estruturante de movimentos populares que se organizam através de ações coletivas e comunitárias, percebe-se na atuação do Estado uma conduta ativa para a construção de mecanismos de viabilização da morte. A soberania é administrada em instrumentos sutis e com aparência de legalidade, como o rito da reintegração de posse, medida largamente concedida em demandas possessórias, que, na maioria dos casos, resguarda a ótica patrimonialista do direito à propriedade, ao mesmo tempo que deprecia seu interesse social, a despeito de este ser um bem jurídico tutelado pela Constituição Federal. A Carta Magna brasileira que completou 32 anos nesta terça (6), um dia depois do Dia Mundial dos Sem Teto, comemorado na primeira segunda-feira de outubro.

O quadro de remoções e despejos promovidos pelo Poder Judiciário em todo o país —como o despejo da Casa Nem, no Rio de Janeiro, do quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, e da comunidade Monte Horebe, no Amazonas— evidencia o compromisso do Estado com a privação do direito habitacional em relação à vida de centenas de famílias, com idosos e crianças, sobretudo numa situação de calamidade de saúde pública mundial.

O poder público precisa encarar a falta de efetivação do direito à moradia enquanto fato gerador de violações a outros direitos fundamentais. Como se vê, para as favelas, para os pretos e para os trabalhadores rurais, a terra não é só o lugar de habitação, mas também de trabalho, de subsistência, de sociabilidade e do comum.

Em suma, resta a afirmação de que o ato transgressor de (re)existir dos despossuídos em meio ao "banzo" contínuo evidencia que há um potencial subaproveitado nas pessoas que lutam e constroem (por e para) espaços de sobrevivência alternativos. Diante disso, as ocupações urbanas e rurais se colocam como instrumentos plenamente legítimos. Elas são a materialidade da luta por reparação às dificuldades e negações históricas impostas ao acesso à terra para a população negra. São espaços de conquista gradativa e coletiva de humanidades e de cidadanias, representando, assim, a própria essência da democratização.


Jessica Soares, estudante de direito da UFRJ, estagiária do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do RJ, integra o grupo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin e o Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira.

Leonardo Batista, estudante de direito da UFRJ, Integra o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin e o Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira.

Thuane Nascimento (Thux) é cria da Vila Operária, flamenguista e evangélica. Estudante de direito da UFRJ, articuladora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin e integrante do Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira e do Movimento Favelas na Luta.

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