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O Deus Negro na experiência evangélica e a Consciência Negra

Precisamos começar a desnaturalizar a ausência dos negros nas esferas de poder das igrejas

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Por Jackson Augusto

Não basta ser uma igreja majoritariamente negra: precisamos de uma igreja com uma consciência negra. Para entendermos isso, primeiro temos que nos perguntar: Se os negros são maioria dentro das igrejas, onde eles estão? Qual o lugar da mulher negra dentro das igrejas? Qual o lugar dos jovens negros evangélicos dentro dos ministérios de juventude?

O lugar do corpo negro dentro de grande parte das igrejas brasileiras está carregando o peso dos instrumentos e equipamentos do som, está nos estacionamentos cuidando dos carros, está na recepção dos cultos. As mulheres negras dentro das igrejas são as que lavam os banheiros e cuidam da cantina. Os pastores negros nas suas denominações são os que estão nas igrejas que menos recebem investimento, muitas vezes nem recebem salário.

Nos seminários teológicos faltam na grade curricular bibliografias negras e africanas. Não se discute a relação histórica da igreja evangélica brasileira com a escravidão e com o processo eugenista. Poucas são as pessoas negras como reitoras ou professoras dos grandes centros teológicos, e as editoras evangélicas não investem em teólogos negros ou em livros que falem sobre as questões raciais.

Vivemos em uma supremacia branca quando vamos falar da institucionalidade das igrejas evangélicas, vivemos uma supremacia quando falamos das famílias brancas que dão o maior dízimo nas igrejas e se acham donas do ambiente eclesiástico, por isso é tão importante abordarmos uma consciência negra dentro da experiência evangélica.

Steve Biko, vai afirmar que a essência da consciência negra é: “A consciencialização por parte do negro da necessidade de se unir a seus irmãos em torno da causa da sua opressão –a negritude da sua pele– e de trabalharem como um grupo para se libertarem dos grilhões que os prendem a uma servidão perpétua. Baseia-se num autoexame que os levou finalmente a acreditar que, ao tentarem fugir de si mesmos e imitar o branco, estão a insultar a inteligência de quem quer que os criou negros.”

Uma consciência negra nos desperta um outro olhar sobre a criação da humanidade, de um Deus que nos criou intencionalmente negros dentro de uma experiência que não pode negar quem somos. Se temos uma igreja que é a favor de políticas de extermínio de pessoas negras, ela está sendo contra essa força criadora, está indo contra a vontade de quem nos criou.

Precisamos começar a desnaturalizar a ausência e negação dos negros nas esferas de poder das estruturas evangélicas, pois só temos duas explicações para essa invisibilidade: esse deus evangélico de fato não ordena pessoas negras para postos de poder ou existe um plano político da branquitude que exclui as pessoas negras do lugar das decisões institucionais e das produções teológicas dentro das igrejas.

A imagem que temos sobre Deus é importante em qualquer religião, pois vai dizer como nos relacionamos com o mundo. A experiência da branquitude, constrói um deus vingativo e punitivo, que durante a história da colonização estava encarnado nos exércitos e governos que sequestraram o povo negro de África. Por isso, quando pessoas negras evangélicas vão falar dentro das igrejas de um Deus que é contra a redução da maioridade penal, contra a política de encarceramento em massa ou a favor de políticas de reparação histórica, elas são silenciadas ou são perseguidas, pois dentro da experiência branca, a vontade de Deus é a vontade da branquitude.

Durante séculos essa narrativa sobre Deus, que chamamos de teologia, também foi sequestrada no processo de colonização. Ela criou uma igreja que cantava aos domingos de manhã e chicoteava os negros naquele mesmo dia, essa teologia branca que formou o pensamento e a consciência da igreja no Brasil. Por isso uma consciência negra é urgente dentro das igrejas brasileiras. É preciso pensar uma teologia a partir da caminhada do povo negro, é preciso uma Teologia Negra, mas qual o objetivo de uma Teologia Negra dentro da experiência cristã? Steve Biko vai afirmar:


“Ela pretende descrever o Cristo como um Deus lutador, e não como um Deus passivo, que permite que uma mentira permaneça sem ser questionada. Ela enfrenta problemas existenciais e não tem a pretensão de ser uma teologia de absolutos. Procura trazer Deus de volta para o negro e para a verdade e a realidade da sua situação. Este é um aspecto importante da Consciência Negra, pois na África do Sul existe um grande número de pessoas negras cristãs que ainda se encontram atoladas no meio da confusão, uma consequência da abordagem dos missionários. Portanto, todos os sacerdotes e ministros religiosos negros têm o dever de salvar o cristianismo, adaptando a abordagem da Teologia Negra e, assim, unindo outra vez o negro ao seu Deus.”

Será que o mesmo deus que era exaltado no domingo pelos senhores de escravizados, que recebia sua preces e suas ofertas para continuar sendo abençoado com mais riquezas e propriedades (leia-se pessoas negras), é o mesmo Deus que recebe as orações das famílias negras hoje? Percebemos que, para a experiência, negra Deus age em favor dos escravizados. Na experiência dos colonizadores, o processo de violência e escravização foi vontade de deus para o bem da humanidade. Portanto ter uma igreja conscientemente negra é estabelecer um compromisso de justiça e reparação, é ter uma igreja que assuma o papel afirmativo de combate ao racismo diante de todas as violências de uma supremacia branca. Abraçar uma consciência negra dentro da igreja como um princípio é, na verdade, lutar pela humanização de todos os tipos de existência, é acreditar na integralidade da justiça, é esperançar a libertação de todos os povos oprimidos e periféricos da Terra.

Quando falamos de um Deus negro dentro da experiência cristã estamos falando do “Cristo como um Deus lutador”, estamos contando uma história que está conectada com o povo negro. Um corpo perseguido pelo Estado, demonizado pelo poder religioso e que não merece a comoção da sociedade que grita “crucifica-o”. Um corpo condenado pela pior sentença que o Estado poderia dar. E nos perguntamos: Qual a cor dos corpos que hoje são sentenciados às piores penas do Estado? Qual a cor dos corpos que não merecem comoção e que são linchados aos gritos de “bandido bom é bandido morto”? Quais as crianças que já nascem com decretos de morte em territórios extremamente militarizados no Brasil?

Diante disso sabemos que o processo de conscientização, a partir da experiência da comunidade negra, é transformador. Por isso é importante, dentro do contexto brasileiro, que os negros evangélicos construam uma rede de solidariedade entre si, lugares de troca e formação.

Se o racismo é uma grande mentira contada pela branquitude —de que nós negros temos o cabelo ruim, os traços feios, que somos os quase humanos, que não somos dignos de afetos, que nossa pobreza é algo natural e que as balas que atravessam nossos corpos todos os dias dentro das favelas brasileiras são para o nosso bem—, se isso tudo é uma grande mentira, é nosso dever falar a verdade, é nosso dever contar a nossa história.

Steve Biko, quando fala de uma consciência negra dentro da igreja, propõe justamente um processo de reconciliação com quem nós somos de fato, para além da narrativa da branquitude. Propõe uma ruptura total através do resgate histórico e da solidariedade entre as pessoas negras, gerando uma superação concreta do racismo através do exercício da memória, destruindo o silenciamento e apagamento do povo negro e da sua diversidade na história.

Por isso é impossível pensar hoje na superação do racismo no Brasil sem a construção de uma consciência negra dentro de uma igreja que já é majoritariamente negra.


Jackson Augusto é batista, produtor de conteúdo do Afrocrente, podcaster no afrocrentescast e ativista da teologia negra no Brasil. Integra a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico e é membro do colegiado nacional do Miqueias, rede global de evangélicos comprometidos com a justiça social.

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