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O direito à cidade na Amazônia: reflexões de uma poeta negra

Ideia de progresso e desenvolvimento que centro urbano e gestores públicos buscam fere nosso modo de vida

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Por Shaira Mana Josy

"Agora é pra valer, estamos indo embora!​ N​os desejem sorte, felicidade e forças para construir um novo ninho. Esses pássaros que só têm​ como limite o céu, construíram com gravetos, argila e muito amor essa morada há 21 anos, e​ hoje é dia de partir. Mas antes conversarei com os bem-te-vis, os periquitos e sabiás que ao longo desse tempo vinham degustar o fruto do açaizeiro, do ingazeiro que meu pai com muita dedicação cultivou no quintal, direi a e​les que infelizmente essa será a última safra, não porque a natureza ficou estéril ou exaurida e sim por que o bicho homem faminto por progresso decidiu que concreto é mais importante que o canto dessas aves. Fica para trás uma vida, lembranças de dias bons, outros nem tanto, encontro, desencontros, daqui a pouco serão apenas escombros. Por hora farei as malas, enquanto enxugo as lágrimas e o que for possível se leva, o que não couber no próximo metro quadrado, ​ fica. O​ difícil é desapegar das lembranças contidas em cada objeto, frutos do suor de uma vida."

Terra firme em plena pandemia

Este texto foi escrito em um momento muito difícil para mim e para minha pequena família. Na busca por um espaço digno para construir nossa moradia devido às dificuldades e limitações financeiras, acabamos construindo nossa casa em uma área periférica abandonada pelo estado há anos no bairro da Terra Firme, periferia da capital do Pará.

Atrás da casa, no fundo do quintal, passava um rio, o Tucunduba, segunda maior bacia hidrográfica de Belém, com extensão capaz de atravessar cinco bairros da região metropolitana. Foram tantas dificuldades para construir a casa que nem conseguimos concluir como queríamos. Lembro das lágrimas que meu pai derramou ao ver a situação do terreno, instável, alagado, que por estar às margens do rio quase não dava para fazer o alicerce. Mas ele não desistiu. Lembro também de ter ido ajudar, carregando concreto para encher os pilares, rejuntar lajota —e assim erguemos nosso lar.

O bairro era tão abandonado pelo poder público que mazelas sociais como a criminalidade dominavam, saneamento básico era inexistente. Certa vez acordamos no meio da madrugada e nos assustamos ao ver a parte de baixo da casa tinha sido invadida pelas águas das chuvas do inverno amazônico, que havia coincidido com a maré alta. Nossas panelas boiavam, quase perdemos fogão e geladeira, além dos pertences do pequeno salão de beleza da minha mãe. Foram quase 19 anos gastando o que não tínhamos para levantar o piso dos cômodos quatro vezes.

Homem passa de moto em rua alagada, com casas ao fundo
Rua alagada no bairro Terra Firme, em Belém (PA) - Pedro Ladeira/Folhapress

Em 2019, o prefeito da cidade, após denúncias no Ministério ​Público, iniciou o asfaltamento da rua em frente de casa, obra superfaturada, mal executada, mas pelo menos foi o primeiro inverno em que não pisamos na lama. Tudo ia bem na medida do possível, ​até que, em 2020, a coisa piorou. O governo do estado do Pará iniciou uma obra de macrodrenagem da bacia do Tucunduba, com recursos altíssimos, e no meio disso minha família e tantas outras da área foram notificadas: nossa casa seria desapropriada com proposta de indenização 50% abaixo do valor real do imóvel. Ficamos sem chão e sem teto. Com a pandemia do novo coronavírus, ​aluguel, venda de imóveis, material de construção tiveram uma alta absurda de preços.

Acabamos tendo que adquirir um terreno, morar de aluguel e tentar recomeçar a construir um outro canto para nos abrigar. Essa é a minha história, mas também é a história de muitas pessoas que constroem suas vidas nas áreas urbanas periféricas, áreas rurais, territórios quilombolas e até na região das ilhas da Amazônia.

O direito à​ cidade não é um projeto pensado para população negra, indígena e periférica, até porque a ideia de progresso e desenvolvimento que o centro urbano e os gestores públicos tanto buscam fere nosso modo de vida, nossas tradições, limita nosso ir e vir.

No Pará, os rios são nossas ruas, as embarcações têm papel fundamental para o abastecimento dos mercados —geralmente partem de áreas distantes e, quando chegam à capital, a estrutura não é adequada para recebê-las, como aconteceu com a reforma do cais no município de Barcarena. Grandes empresas, como a responsável pelo abastecimento de energia elétrica, têm invadido territórios quilombolas na surdina, quando o protocolo de consulta prévia livre e informada dos povos tradicionais ainda está em andamento.

Todas essas ações, como a desapropriação das famílias do Tucunduba, foram realizadas de forma desumana, sem condições de escolha, jogando pessoas já marginalizadas para locais mais distantes e sem perspectiva de melhoria. Na realidade, se trata de uma higienização dessa população, que, assim como eu, é preta e parda.

Isso significa que, quando o progresso chega, somos excluídas do espaço, tendo que recomeçar do zero, ou precisamos recuar para dar espaço ao modelo de desenvolvimento que convém a uma minoria elitizada em nome do bem-estar e do enriquecimento de empresários (as) e gestores públicos desonestos.

"O estado é opressor, o estado é massacrador,

E eu, acreditando em democracia

Fui mais uma vítima, da higienização da minha periferia."

Joseane Franco Teles, a Shaira Mana Josy, é poeta, MC e pedagoga. Mulher negra, militante do movimento hip-hop e coordenadora do projeto Slam Dandaras do Norte em Belém (PA).

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