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Transvulnerabilidade e as eleições de 2020

Parlamentares trans vão gerar um importante olhar sobre como se faz política

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Por Davi Spilleir

A representatividade trans ganhou um salto quantitativo nas eleições municipais de 2020, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Foram aproximadamente 300 candidaturas espalhadas por 25 estados (estando a maioria delas no Sudeste, 124, e 65 só em São Paulo) e que resultaram em 15 parlamentares eleitos: 1 homem trans e 14 mulheres trans e/ou travestis.

Alguns destes nomes tiveram votações expressivas, como Duda Salabert (PDT) e Linda Brasil (PSOL), respectivamente as vereadoras mais votadas de Belo Horizonte e Aracaju, ou mesmo Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL), que figuraram entre os dez mais votados ao legislativo de São Paulo. Com cifras bastante expressivas, nota-se um aumento na representatividade trans, sobretudo em comparação com as eleições de 2016. Um aumento de 226% nas candidaturas e de 87% nas candidatas eleitas.

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Erika Hilton, vereadora eleita pelo PSOL em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

É claro que essas parlamentares gerarão um importante olhar sobre como se faz política e, espera-se, serão capazes de gerar políticas públicas para uma população que, mesmo dentro dos debates sobre a diversidade, é constantemente invisibilizada.

Entretanto, se por um lado os números das eleições nos empolgam, por outro lado entendemos o motivo de se fazer ululante a presença de trans na política. Choca o último boletim da Antra: o número de assassinatos de pessoas trans no país teve o quarto aumento consecutivo e já representa um acumulado de 70% quando comparado ao mesmo período de 2019. Foram 129 pessoas trans mortas até 31 de agosto, sendo São Paulo (19), Bahia e Minas Gerais (16), Ceará (15) e Rio de Janeiro (7) os estados que mais matam.

Ora, apesar de assustadores, estes números estão claramente subdimensionados. A despeito dos esforços da Antra, o Brasil ainda produz poucas estatísticas públicas sobre travestis e transexuais. Mesmo na academia, estudos rareiam, quando não são permeados de olhares moralizadores sobre suas questões, que tentam imputar a uma população já bastante vulnerável a responsabilidade pelo seu status de vulnerabilidade.

Não basta que relatemos, por exemplo, que a população trans constantemente abandona seus tratamentos médicos, ou que mormente possuem baixa escolaridade, ou mesmo que, na seara do trabalho, centram-se no setor de serviços e que geralmente encontrem na prostituição uma via de escape. É necessário fazer uma análise mais minuciosa, entender as condições ambientais e de relações sociais que permeiam as vidas das pessoas trans e travestis.

Explico: um olhar interessante sobre a questão do abandono de tratamentos médicos seria o de analisar como o nome social é desrespeitado (e, consequentemente, a própria identidade da pessoa) e como a condição patologizada da transexualidade presta um enorme desserviço ao reforçar os estigmas sociais. Ficou em minha cabeça um caso que encontrei em Rocon et al (2016), na revista Ciência da Saúde Coletiva: o relato de Afrodite (mulher transexual, 24 anos), que sofreu preconceito por parte do médico do Departamento Médico-Legal.

O médico se recusava a chamá-la por seu nome social. Na ocasião, Afrodite estava fazendo corpo de delito, após ter sido vítima de estupro enquanto trabalhava. Situações como esta, longe de serem exceções, são como regras a esta população.

Sobre a baixa escolaridade, iniciar pela indagação sobre como o ambiente escolar é totalmente hostil a essas pessoas, que faz com que tenham que abandonar os estudos precocemente, parece um bom início. Afinal, em muitos casos, é a escola a primeira grande seara em que o preconceito e o estigma acontecem, seguida da família, que não raramente agride e expulsa tais pessoas de seus convívios sociais.

Por carregarem em seus corpos a pesada marca de serem que são, não alcançam boas posições no trabalho. De fato, em estudo conduzido, mostra-se que a discriminação se inicia já no momento da pré-seleção. Candidatos que se autodeclaram trans possuem até 85% mais de chance de serem descartados, mesmo com currículos idênticos aos das pessoas cis (nota: os números são tirados de Granberg, Anderson e Ahmed (2020), em um estudo conduzido na Suécia, o que nos leva a crer que a realidade brasileira seja ainda pior).

Mal pagas, excluídas por suas famílias, humilhadas em seus direitos básicos, como saúde, e impossibilitadas de estudar, não surpreende que a prostituição se mostre uma saída viável para as pessoas trans. Tanto é assim que a própria Antra expressa que 9 entre cada 10 transexuais ou têm a prostituição como uma das formas de renda ou já tiveram no passado.

Para piorar, no presente, suas vidas são diretamente impactadas pela existência da pandemia. As trans e as travestis que trabalham com sexo seguem suas funções expostas a mais um assassino cruel e despojadas de qualquer tipo de proteção.

O fato de essas pessoas terem que se expor nas ruas, associado à infinidade de preconceitos e costumes reacionários da autoritária sociedade brasileira, faz com que as vias públicas se tornem locais de perigo de vida às pessoas trans. Mendes e Silva (2020), também na revista Saúde Coletiva, expõem que os assassinatos ocorridos (ou melhor, noticiados) das pessoas trans entre 2002 e 2016 ocorreram predominantemente em vias públicas (76,8%), e por ações militares (69,8%), com claras evidências de crime de ódio, já que (49,8%) dos homicídios ocorreram por armas de fogo, com 2 a 5 disparos (57,1%) e as vítimas eram quase todas profissionais do sexo (79,5%), jovens entre 20-29 anos (49,5%).

No mesmo ano em que ocorreu a equiparação da LGBTQIA+fobia ao crime de racismo, pelo STF, parece que ainda estamos engatinhando no trato civilizatório das questões trans. O Estado segue omisso, os crimes galopantes e as trans vulneráveis.

Talvez seja um otimismo ingênuo, mas espero que esses vereadores possam ser, mais que porta-vozes, reais líderes de mudanças, por estarem imbuídos de todas as dores e batalhas diárias que o conhecimento de causa gera. Resta que se convertam, também, em políticas públicas e respeito à cidadania.

Aproveito a oportunidade para enviar um enorme abraço a Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra, e a Sayonara Nogueira, vice-presidenta do IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação), na expectativa de que todos os militantes e participantes da causa trans sintam-se, sob o nome das duas, cumprimentados pelos incansáveis esforços. A luta pela existência continua.


Davi Spilleir é mestre em sustentabilidade, ativista LGBTQIA+ e pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária.

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