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Como semear a esperança de um ano melhor num país que não nos permite viver o amanhã?

No início de um ano que já enuncia a que veio, apesar de difícil e dolorosa, semear a esperança de dias melhores torna-se uma tarefa cada dia mais necessária

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Lorraine Vicente

é cria do Morro do Santo Cristo, em Niterói, e graduanda em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

O ano de 2021 começa com uma perda trágica para os moradores do morro do Santo Cristo, no bairro do Fonseca, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. No dia 5 de janeiro, dois jovens negros, Gabriel Machado (21 anos) e Jeferson Bispo (15 anos) foram mortos durante uma operação da Polícia Militar na comunidade. Em nota, a polícia afirma —como de costume— que os jovens foram encontrados feridos após confronto armado com traficantes da localidade. No entanto, segundo moradores, policiais chegaram à comunidade atirando e Gabriel, que tinha deficiência, estava catando latinha quando foi atingido.

O ano pode ser novo, mas o cenário para os moradores de comunidades parece não ter mudado, pois mais dois jovens de regiões periféricas entraram para as velhas estatísticas de violência no Brasil. Falando nelas, vale destacar que o Atlas da Violência, lançado em 2020, aponta que a principal causa dos óbitos da juventude masculina no Brasil foram os homicídios, responsáveis por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos, por 52,3% dos que têm de 20 a 24 anos e de 43,7% dos que estão na faixa etária de 25 a 29 anos. O estudo ainda aponta que os jovens negros despontam, representando, apenas no ano de 2018, 75,7% das vítimas de homicídios.

Grupo de manifestantes de costas para a câmera em frente a policiais; uma mulher segura uma camiseta branca e a ergue
Manifestação após a morte de Marcelo Guimarães, em 4 de janeiro de 2021, na Cidade de Deus, no Rio - Allan Carvalho - 4.jan.2021/NurPhoto

Com a chegada de um ano novo, é comum que renasçam os desejos de dias melhores, de saúde — especialmente num cenário de pandemia— , de prosperidade e de paz. No entanto, apenas cinco dias depois do início de 2021, a realidade, que para muitos bate à porta, como é o caso dos moradores do Santo Cristo, chega com a violência de um tiro de fuzil.

Neste cenário, uma pergunta paira sobre nossas cabeças: como ter esperanças de um ano melhor num país que não para de nos matar? Com essa e outras perguntas sem respostas, rememoro a história da minha família, que se mistura à da comunidade (de Santo Cristo) que hoje sofre com suas mais novas perdas.

O morro do Santo Cristo, que hoje chora a morte de duas de suas sementes, é o mesmo chão onde meus bisavós, Manoel João e Declarice, construíram num quintal modesto um verdadeiro quilombo. Esse quintal-quilombo, posteriormente chefiado pela minhas tias-avós, que como nos lembra Conceição Evaristo, sempre “costuraram a vida com fios de ferro”, foi, durante mais de 70 anos, lugar de refúgio, de solidariedade e de verdadeira materialização da filosofia africana ubuntu (eu sou porque nós somos) para as diversas famílias que ali habitaram. Infelizmente, a experiência dupla que marca a relação do morador com o território, caracterizada pela vivência harmônica em comunidade em contraste com a intervenção estatal calcada na violência, dificultou a continuidade desse sentimento e as sementes que ali foram plantadas tiveram de buscar outros solos para se fincar. No entanto, as vivências e os valores construídos por anos naquele território não se perdem. Elas ficam com a gente.

Revivendo a história da minha família e do lugar onde nasci e fui criada, percebo como olhar para trás nos ajuda a suportar minimamente o hoje. Olhar para essa história e enxergar os frutos desse quintal me lembra quantas potências foram gestadas neste chão, hoje banhado de sangue, num tempo em que sonhar com dias melhores também era uma tarefa difícil.

Vista aérea do bairro do Fonseca com casas no horizonte
Bairro do Fonseca, na zona norte de Niterói (região metropolitana do Rio), onde está localizado o morro do Santo Cristo - Reprodução

Desde o início de 2021, perdemos Alice, aos 5 anos de idade, na virada do ano no morro do Turano, Marcelo, de 38 anos, a caminho do trabalho na Cidade de Deus e, neste dia 5, os corpos de Gabriel e Jeferson tombaram pelas balas que “cortam e recortam os corpos da noite”. Hoje, no início de um ano que já enuncia a que veio, apesar de difícil e dolorosa, semear a esperança de dias melhores torna-se uma tarefa cada dia mais necessária.

Na virada do ano de 2019 para 2020, Conceição Evaristo nos alertou que aquele era um “Tempo de aquilombar”. Agora, no início deste novo ciclo, chego à conclusão de que, para nós, esse tempo nunca chegará ao fim. Num janeiro que começa com uma velha notícia nesta terra que “está coberta de valas”, o ano de 2021 segue inaugurando um novo tempo de "caminhar em fingido silêncio, e buscar o momento certo do grito”. Num país que não nos permite respirar, não nos permite esperançar e não nos permite viver, sempre é tempo de “cuidar dos passos assuntando as vias, ir se vigiando atento, que o buraco é fundo”. Vivendo num lugar em que a violência não entra em quarentena, é sempre tempo de “aparentar fechar um olho evitando o cisco e abrir escancaradamente o outro”.

E mais do que nunca, seguimos com a necessidade de um tempo para “formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos”, para que, pelo menos entre os nossos, apesar dos golpes diários que sofremos desde que aqui chegamos, seja possível manter viva a esperança de dias melhores. E sim, como disse Conceição, “apesar das acontecências do banzo, há de nos restar a crença na precisão de viver”.

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