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No silêncio do meu mundo

Nosso sistema político racista mata seja fisicamente ou simbolicamente

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Davi Pereira Junior

Cria do território quilombola de Itamatatiua, em Alcântara, no Maranhão. É historiador (UEMA) e mestre em Antropologia Social (UFBA), fellow da Fundação Ford e está no último ano do doutorado de Estudos latinoamericanos, africanos e diáspora na Universidade do Texas

No silêncio do meu mundo, percebo que a conquista da maioria das grandes cidades pelos partidos de centro-direita nas eleições municipais do ano passado dá um prognóstico nada animador para o país, principalmente no que diz respeito às pessoas negras, pobres e faveladas. Fico escandalizado como este cenário não tem servido de alerta para grande parte dos ditos “partidos progressistas”. Em vez de fazerem autocrítica e buscarem as razões pelas quais o eleitorado tem migrado os votos para partidos de centro-direita, eles focaram na construção de uma narrativa em que o grande derrotado das eleições foi o “chefe” do Executivo. Essa é uma análise equivocada, pois demonstra o quanto o campo progressista está envolto na própria vaidade e tem sido incapaz de reconhecer o próprio fracasso.

No silêncio do meu mundo, eu vejo que a negação da realidade tem se tornado a tônica de uma esmagadora parte do campo progressista. É inacreditável como os progressistas continuam subestimando a extrema direita, mesmo depois de seus cerca de 58 milhões de votos para a Presidência do país. Os ditos progressistas precisam admitir que os “valores” defendidos pela extrema direita, de fato, representam a forma de pensar desses cerca de 25% da sociedade brasileira. As eleições de 2018 escancararam para o mundo o lado escroto da sociedade brasileira, com racismo, violência e todos os tipos de preconceito. Escrotidão essa que nós, as “ditas minorias políticas”, conhecemos e temos que lidar cotidianamente desde sempre.

Do meu silêncio, eu observo que grande parte do “campo progressista” morre afogada em uma realidade paralela, como o da disputa para ver quem tem o maior “falo” e fará a união "messiânica" desses partidos em direção a uma vitória esmagadora, mística e gloriosa. Seria bom que esses autoproclamados líderes fiquem atentos ao que aconteceu nas eleições estadunidenses. A disputa política norte-americana pode ser considerada um laboratório para o que pode acontecer nas próximas eleições brasileiras, se considerarmos que as mesmas estratégias usadas, em 2016, pela extrema-direita de lá foram replicadas aqui.

No silêncio do meu mundo, eu penso que o campo progressista não foi hábil o suficiente para transformar o pleito de 2020 em esperança de vitória para as próximas eleições. Quem esteve minimamente atento à situação política do Brasil “previu” facilmente o fracasso do “chefe” do executivo na disputa eleitoral municipal. A sua inabilidade de gerir as diversas crises pelas quais o país passa e a sua baixa popularidade entre os candidatos com condições de serem eleitos foram dois fortes indicativos dessa previsão.

Penso que não seja possível negligenciar a capacidade de causar estragos de narrativas criadas por alguns líderes populistas, mesmo que elas sejam feitas a partir de uma realidade paralela e negacionista. Quem poderia imaginar que uma democracia consolidada como a estadunidense se mostrasse frágil para quem acredita em uma teoria infundada de fraude. Imagina se a moda pega em nosso país, com histórico de acreditar em mentiras, como “comunista come criancinha”, “mamadeira de piroca” e “kit gay”!

No meu silêncio, eu entendo que uma das lições que pode ser aprendida com as eleições estadunidenses é que, apesar de um mandato conturbado e cheio de contradições, Trump foi o segundo candidato mais votado da história dos Estados Unidos. Assinalando de certa forma uma capacidade de arregimentar ainda mais eleitores, embora em alguns estados conservadores “tradicionais”, como o Texas, a juventude tenha sinalizado uma mudança em direção aos progressistas, os conservadores conseguiram evitar uma derrota expressiva.

Do silêncio do meu mundo, observei a imprensa celebrar como o grande diferencial do pleito estadunidense o esforço da ativista negra e ex-deputada da Geórgia, Stacey Abrams. Depois de “sair derrotada” na eleição para o governo da Geórgia, em 2018, e ter sido preterida para a vice-presidência por causa do seu “perfil ativista”, ela (não foi descansar em Paris) arregaçou as mangas e identificou a causa da “derrota” (dispositivos que dificultam o voto de pessoas negras). Com essas informações, ela trabalhou cirurgicamente para superá-la e garantir o direito ao voto de milhares de pessoas. A sua luta se estendeu para além da comunidade negra e garantiu ainda duas cadeiras no senado.

No meu silêncio, eu vi a vitória da extrema direita nos Estados Unidos, em 2016, sendo atribuída a grande abstenção (lá o voto não é obrigatório e o sistema de votação é complexo), mesmo argumento usado por alguns progressistas para justificar a chegada da extrema direita ao poder no Brasil. Diferente do que Abrams fez na Geórgia, eu não vejo o mesmo tipo de iniciativa aqui. Muito pelo contrário, vejo muito ego e muita gente se auto-intitulando “iluminado” em torno do qual tod@s deveríamos nos unir.

No meu silêncio, eu digo que não é uma questão de ausência de lideranças com esse perfil ou talvez até mais fortes e com mais ligação visceral com as comunidades no Brasil. O caso é que o nosso sistema político racista os “mata” seja fisicamente ou simbolicamente. Neste último caso acontecendo nas engrenagens racistas dos partidos, que expropriam nosso capital político e nos transformam em captadores de votos, porque só admitem o mais do mesmo: o candidato branco. Essa situação acontece principalmente com os progressistas, pois são neles que procuramos abrigos na ilusão de que lá teremos espaço. Entretanto, com raras exceções, esses espaços também reproduzem mortes simbólicas para nós.

Não é que, no silêncio do meu mundo, eu tenha algum tipo de esperança que alcancemos justiça social e igualdade racial com o campo progressista chegando ao poder. Eu sei que não vai rolar. Quando estiveram no poder nunca se preocuparam em fazer mudanças estruturais radicais ou em compartilhar poder com negros, favelados, mulheres, indígenas e outros. Eu tenho a impressão que para a esmagadora maioria do campo progressista a gente não representa nada mais que voto para garantir a sua continuidade no poder. Minha preocupação vem no sentido de ter percebido a migração de muitas lideranças de movimentos sociais, principalmente de povos e comunidades tradicionais, para partidos de centro-direita. O raciocínio é lógico. Se essas lideranças migram, os votos também migram, ou seja, estamos fortalecendo a base de quem tem como projeto a nossa morte sistêmica. É preocupante que ninguém esteja tentando entender as razões pelas quais essas lideranças fazem esse movimento.

Do silêncio do meu mundo, digo que a esquerda progressista e liberal, tal qual a extrema direita que governa o país, não nos serve. É inaceitável (mas não surpreende) que tudo que se tem aí pensado para 2022 não nos inclua enquanto potência política capaz de ser protagonista no pleito. A dita esquerda nos vê apenas como uma massa que pode ser dispensada depois deles atingirem os seus objetivos. Tanto é verdade que os debates não nos inclui. Eles estão polarizados entre o mais do mesmo, “homens” brancos e velhos que agem como coronéis e se arrogam donos da “porra toda”. Eles não estão dispostos a nos oferecer nada além da mesma migalha de sempre, porque não significamos nada além de um voto sem nome perdido na “multidão”.

Do silêncio do meu mundo, eu me despeço dizendo que, embora meu texto possa parecer um tanto escatológico e pessimista, demonstrando uma forma realista de interpretar o mundo que vivo, penso ainda haver saídas dessa tragédia que “somos” enquanto sociedade. Por ora vou guardando comigo no silêncio do meu mundo, a lista é grande, mas, afinal, por que eu deveria falar? O mundo é surdo para nós.

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