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A tentativa de diminuir o legado de Nei Lopes foi interrompida pelo movimento negro

Após protestos, a UFRJ concedeu o título de doutor honoris causa ao advogado

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Thuane Nascimento (Thux)

Aluna da Faculdade Nacional de Direito, cria da Vila Operária - favela de Duque de Caxias, diretora do PerifaConnection e integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Najup) Luiza Mahin

Fabiano de Moraes

Doutorando em Sociologia e mestre em sociologia e antropologia, pela UFRJ. Morador da Pavuna, bairro do Rio de Janeiro que faz fronteira com a Baixada Fluminense, é advogado formado pela Faculdade Nacional de Direito, Licenciando em Ciências Sociais e bacharel em defesa e gestão estratégica internacional

Nei Lopes é bacharel em direito e ciências sociais pela UFRJ, doutor honoris causa pela UFRRJ e pela UFRGS, autor de 40 livros, compositor premiado e vencedor do Prêmio Jabuti 2016.

Certa vez, Sueli Carneiro usou uma expressão para elogiar Milton Santos, que cabe estendê-la a Nei: apesar do que o Estado brasileiro ofertou a ele como oportunidades e possibilidades (nenhuma ou pouca, como a qualquer negro que habita esse país), Nei construiu um legado incrível.

Qualquer pessoa, instituição e organização teria como orgulho próprio oferecer a ele uma homenagem. Mas, infelizmente, este não foi o caso da Faculdade Nacional de Direito (FND).

Apesar de ter sido o principal palestrante na comemoração dos 130 anos desta ilustre unidade da UFRJ, a congregação (órgão máximo deliberativo da FND) negou a ele o título de doutor honoris causa, com o argumento de “falta de aderência temática”.

A branquitude —nos termos em que aparece definida por Thula Pires— tentou vencer, mas os movimentos negros e figuras públicas chamaram atenção para o caso, que se mostrou absurdo na opinião pública.

Como podem negar um título acadêmico a um intelectual tão grande e merecedor? Em razão dos protestos e da brilhante atuação do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO), semanas depois, a decisão foi, felizmente, reconsiderada.

Vale dizer que a faculdade, os professores envolvidos e a relatora do caso não devem se orgulhar pela reconsideração. Dar a eles glória pela decisão é uma evidente demonstração do pacto narcísico da branquitude. A reconsideração somente aconteceu por causa da indignação pública.

Quem fez o devido reconhecimento foram os movimentos negros e estudantis. Os representantes da universidade sequer pediram desculpa pelo erro inicial. Partindo de uma leitura da obra de Silvio Almeida, trata-se de uma manifestação do racismo institucional e, por isso, ainda cabe rebater o argumento fundamental a ser refutado: a falta de aderência jurídica de Nei Lopes.

Teria sido muito melhor, para fins de argumentação, que tivessem dito que Nei Lopes não tem lá muita aderência judiciária ou judicial, afinal, ele mesmo assume que não atuou muito e intensamente na condição de advogado. Agora, convenhamos que as qualificadoras “judiciária” e “jurídica” são afins, mas não são a mesma coisa.

Retrato do escritor e compositor Nei Lopes
Retrato do escritor e compositor Nei Lopes - Jefferson Mello/Divulgação

A riqueza do campo teórico permite uma simplificação pertinente à indicação de alguém para a honraria específica: jurídico tem a ver com direito e com justiça, não necessariamente com o exercício da capacidade postulatória.

Dessa forma, torna-se aceitável reconhecer a aderência jurídica direta e indireta de Nei Lopes.

Primeiramente, direito —seus ritos, práticas e vestimentas— é elemento cultural que aparece ilustrado e criticado pelo compositor ao longo de sua obra de maneira sagaz e descontraída.

Nei Lopes articulou pensamentos que afrontam diretamente as bases que dão vida à história do ordenamento jurídico brasileiro positivado. Ou as normas nasceram do nada e foram articuladas por ninguém? Não têm elas, em sua origem e vida, marcadores sociais, históricos e culturais? O pensamento só teria relevância jurídica se doutrinário, interpretativo de lei positivada e de jurisprudência?

Não parece ser o caso, considerando que a própria Faculdade Nacional de Direito tem um histórico de luta social, uma ementa voltada à reflexão da justiça e sua origem, além de uma linha de pesquisa específica na pós-graduação sobre “Sociedade, Direitos Humanos e Arte”.

Sendo o direito elemento cultural, o jurídico também se articula socialmente, inclusive, nas linguagens mais repudiadas.

Uma coisa é a lei ser oficial, legítima e do Estado, e outra é condicionar as definições do que seja jurídico à prática de uma ou outra carreira.

Note-se, então: Brasil, uma nação fundada na sofrida mão-de-obra escrava que até os dias presentes deixa suas marcas; a mesma mão de obra, de hoje e de ontem, justificada pelas leis. Qualquer um capaz de fazer cair a imparcialidade e a pretensa justeza de uma cultura de Direito ainda em aperfeiçoamento tem relevância jurídica verdadeira, pois lida com a realidade.

Ainda mais Nei Lopes, que o faz de maneira tão arrazoada e irreverente, mas cuja contribuição foi dita de pouca aderência pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) em que se formou quando quase nenhuma pessoa negra se formava.

Outro formado da época é o doutor Eloá Cruz, o requerente da concessão do título a seu contemporâneo colega de curso, que bem sabe que da FND saem bacharéis em ciências jurídicas e sociais, apesar de cada vez mais haver no corpo docente da faculdade quem persista em uma técnica “pura”, estranha, afastando o social da formação dos juristas.

Sabemos a quem interessa tornar alheio o conhecimento da realidade social de um país que é controlado para beneficiar as elites sociais e raciais: aqueles que se beneficiam dessa realidade e que fazem parte dessa elite.

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