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Obstáculos ao trabalho decente no Brasil

Crise permanente de acesso a direitos trabalhistas requer superação de lógicas coloniais e racistas

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Thiago Garcia

Advogado formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador das intersecções entre direito, sociedade e relações de trabalho

O trabalho decente é conceituado pela Organização Internacional do Trabalho como a síntese de quatro objetivos estratégicos da organização, que incluem o respeito a direitos no trabalho, sem discriminação, a promoção de emprego produtivo e de qualidade, a ampliação de proteção social a trabalhadores e trabalhadoras, e o fortalecimento de diálogo social.

Em tempos em que o debate de ESG --sigla que em língua inglesa refere-se às práticas empresárias relacionadas à conformidade com aspectos ambientais, sociais e de governança-- ganha cada vez mais visibilidade, o conceito de trabalho decente e a promoção e efetivação dele no cenário nacional deveria ser pauta principal, seja do poder público ou de iniciativas privadas.

Trabalhadores resgatados em regime análogo à escravidão foram alojados em ginásio de Bento Gonçalves (RS) - Divulgação

No entanto, permanências de dinâmicas sociais arraigadas no tecido social brasileiro fazem com que as relações de trabalho no Brasil ainda sejam perpassadas por lógicas de precarização, exploração e violações de direitos.

Recentemente, foi amplamente noticiado que as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton mantinham contrato de terceirização de colheita de uva com fornecedor cujos trabalhadores e trabalhadoras eram submetidos a regime de trabalho análogo à escravidão na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.

Após a fuga de três trabalhadores, operação realizada pelo Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal resultou no resgate dos outros trabalhadores e trabalhadoras, incluindo mulheres grávidas e crianças que moravam no alojamento.

Entre as violações identificadas, nota-se que as pessoas resgatadas, que vinham de outras localidades em busca de oportunidades de trabalho, eram submetidas a violências corporais, com utilização de choques elétricos e sprays de pimenta, e privados de liberdade, além da precarização laboral que enfrentavam, que incluía remuneração inadequada, servidão por dívida e jornadas de trabalho extenuantes de mais de 15 horas diárias.

Apesar de esforços da comunidade local em denunciar a situação às autoridades, a atuação pública frente ao problema só foi levada a cabo apenas após a fuga de trabalhadores do local de trabalho.

Embora a ideia em torno da concepção de escravidão remeta aos períodos pretéritos coloniais e de tráfico internacional de pessoas, o episódio citado permanece uma problemática contemporânea.

Conforme pesquisa do Ministério do Trabalho, ao longo do ano de 2022, 2.575 trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados de situações laborais em que, nos termos no Código Penal brasileiro, haveria submissão de pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, com condições degradantes de trabalho ou restrições à locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.

Operação resgatou trabalhadores mantidos em situação de escravidão em Bento Gonçalves (RS) - Divulgação

É válido ressaltar que o Brasil já foi condenado no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em razão das debilidades institucionais para o enfrentamento do trabalho escravo em vista do caso Fazenda Brasil Verde, no qual homens e mulheres também foram submetidos a trabalho análogo à escravidão.

A atualidade do problema demonstra a permanência de dinâmicas sociais baseadas em naturalização de violências e desumanização que encontram fundamento nos regimes coloniais de hierarquização social e permanecem sendo uma realidade, sobretudo em contexto de trabalho rural, industriais têxteis e postos de trabalho doméstico, em que são empregadas, sobretudo, pessoas racializadas.

O perfil de trabalhadores resgatados repete-se, e não por coincidência: homens, pretos e pardos, em idade adulta e com baixa escolaridade, em municípios onde há baixas taxas de índice de desenvolvimento humano.

Apesar de o trabalho análogo à escravidão, como o ocorrido no episódio das vinícolas, figurar como uma forma de exploração laboral em nível ultrajante, violações às disposições da regulação trabalhista brasileira são cotidianas.

Não é lugar incomum nos depararmos com trabalhadores e trabalhadoras que atuam em jornadas exaustivas com remuneração insuficiente para a própria subsistência com cada vez menos proteção social, a despeito das previsões da legislação trabalhista.

Tais fatos permitem a aferição de que, no contexto das relações laborais, vivenciamos uma crise permanente de acesso a direitos trabalhistas em que o trabalho decente é uma realidade para poucos.

Nesse sentido, camadas populares são as que mais sofrem com os impactos da precarização e falta de atuação do poder público, destacando-se a realidade da população afro-brasileira.

Alojamento de trabalhadores de colheita de uva era apertado, sem higiene e sem segurança, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego - Divulgação

Se por um lado as dinâmicas sociais são demarcadas por violações, por outro, em evidente complementariedade, os personagens que compõem o sistema institucional de proteção ao trabalho e emprego no Brasil sofreram investidas no sentido de desestruturação e falta de investimentos das autoridades em posição de poder nos últimos anos –a exemplo do Ministério do Trabalho, o qual desempenha papel protagonista na fiscalização das relações de laborais, em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, que havia sido extinto da estrutura do Poder Executivo Federal e foi reinserido apenas no último ano.

A alteração do estado da arte que ainda permite que homens e mulheres sejam submetidos de forma sistemática a trabalho precarizado e a violações de direitos fundamentais e do trabalho só será possível mediante esforço coletivo e institucional convergente para celebração de um novo pacto social pautado na superação de lógicas coloniais e racistas, na atuação do poder público de forma a garantir proteção social aliada a proteção ao trabalho e a interesses populares, e no reconhecimento efetivo do direito ao trabalho decente como um direito humano.

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