Rafael Muñoz

Economista líder para o Brasil do Banco Mundial, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

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Desvincular ou vincular melhor?

Qualidade dos serviços de saúde e educação no setor público não é compatível com o volume de recursos alocados

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A Constituição Federal de 1988 buscou garantir um volume mínimo de recursos públicos para o combate à pobreza no Brasil. Identificou, corretamente, a educação e a saúde como áreas críticas para romper o círculo vicioso da pobreza que assolava grande parte da população brasileira. Visando a garantir um montante mínimo de recursos para essas áreas –em um país com longo histórico de captura de privilégios para as elites políticas– a Constituição vinculou 25% e 15% das receitas estaduais e municipais à educação e saúde, respectivamente (18% e 15% no caso do Governo Federal).

Desde então, alguns estados foram além e aumentaram a receita vinculada à educação e saúde em suas constituições estaduais. O Brasil se sobressai nessa abordagem, já que poucos países têm casos tão extremos de vinculação de receitas a gastos específicos em suas constituições –certamente não em níveis tão elevados quanto no Brasil.

A Constituição canalizou um grande fluxo de recursos para a educação e a saúde. Na educação, os gastos aumentaram de cerca de 4% do PIB em 2000 para 6,2% do PIB em 2015, triplicando os gastos por aluno. De fato, a parcela do PIB destinada à educação no Brasil é maior que nos países da OCDE. Esses recursos trouxeram melhorias importantes –por exemplo, uma cobertura do Ensino Fundamental de quase 100% e a criação do SUS (Sistema Único de Saúde).

Jovens sentados na sala de aula com livros sobre a mesa
Qualidade dos serviços de saúde e educação no setor público não é compatível com o volume de recursos alocados - Zanone Fraissat/Folhapress

A qualidade dos serviços de saúde e educação no setor público, no entanto, não é compatível com o volume de recursos alocados. De acordo com o relatório Ajuste Justo do Banco Mundial, o custo da ineficiência na educação equivale a 1% do PIB no Brasil; se fossem usados com eficiência, esses recursos poderiam melhorar os resultados do Ensino Fundamental em 40%, e do Ensino Médio em 18%. Embora essa relativa ineficiência tenha diversos motivos, alguns podem estar ligados às vinculações.

Em primeiro lugar, as vinculações têm um impacto negativo na gestão orçamentária de modo geral, pois engessam o orçamento. De fato, mais de 90% das despesas públicas federais no Brasil já estão comprometidas, deixando pouco espaço para novas prioridades. É um patamar muito acima de outros países da América Latina e da OCDE.

Em segundo lugar, os gastos públicos tornam-se muito pró-cíclicos. Quando a arrecadação é maior do que o esperado, o dispêndio com educação e saúde aumenta, gerando gastos recorrentes que serão difíceis de suportar se houver uma queda na receita arrecadada em anos subsequentes, dado o grande componente salarial nos dois setores e a forte proteção dos servidores públicos. Nessa situação, os políticos são obrigados a cortar bens essenciais ou investimentos com retornos possivelmente mais elevados.

Em terceiro lugar, distorce o processo de alocação nos dois setores. O planejamento é difícil, pois os recursos dependem de receitas e não de necessidades. Além disso, os recursos destinados à educação e à saúde não concorrem com outros setores, podendo tornar a avaliação das políticas menos rigorosa. As vinculações não estão ligadas a uma abordagem "de baixo para cima" baseada nas necessidades dos setores e, portanto, não correspondem necessariamente às tendências demográficas estruturais, que demandam gastos crescentes com saúde à medida que a população envelhece e menos gastos com educação à medida que o número de crianças diminui.

Além disso, as mudanças demográficas são altamente heterogêneas e variam de um local para o outro no país; aplicar a mesma regra de 25% em todo o território nacional prejudica tanto a eficiência quanto a equidade. As vinculações estão fazendo com que alguns estados e municípios gastem um valor muito mais alto por aluno, que não necessariamente se traduz em melhores resultados. Na realidade, os municípios mais ricos são os menos eficientes em seus gastos com a educação, ou seja, são forçados a dedicar mais recursos para a educação do que gostariam (ou necessitariam).

A eliminação das vinculações (e da indexação de diversos gastos sociais) facilitaria a alocação orçamentária com base em planejamento e evidências –com foco em resultados, não em verba. No entanto, tal reforma também aumentaria o risco de uso dos recursos em benefício das elites políticas, pondo em risco os gastos com educação e saúde. A abolição das vinculações, portanto, exigirá algum sistema alternativo para garantir que o preceito constitucional de acesso à saúde pública e educação de qualidade seja cumprido, mas com menos distorções e de forma que aumente a eficiência dos gastos públicos, ao invés de prejudicá-la.

Diversas alternativas foram propostas para alterar esse sistema ao longo dos anos. As discussões sobre o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) podem ser uma ótima oportunidade de repensar as vinculações na educação, garantindo a alocação equitativa de recursos para todos os alunos (definindo, por exemplo, um gasto mínimo por aluno). Isso garantiria um valor mínimo para a educação e refletiria as tendências demográficas, facilitando as ações de planejamento. Além disso, o valor pode ser expresso como percentual da renda per capita ou os valores mínimos podem ser ajustados regularmente para garantir que os recursos destinados ao setor aumentem à medida que o país cresce. Na realidade, associar a vinculação aos gastos por aluno (e não à receita) pode acabar aumentando os gastos em muitos municípios, promovendo a equidade regional.

O ponto central do debate sobre a desvinculação, portanto, não deve ser quanto o Brasil deve gastar com saúde e educação, mas sim como criar sistemas que garantam a alocação de recursos suficientes e com eficiência para oferecer aos cidadãos os serviços de qualidade que esperam e merecem. 

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