Rafael Muñoz

Economista líder para o Brasil do Banco Mundial, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

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O caso do saneamento básico: testando novos arranjos para atrair mais investimentos

O Brasil ainda tem 100 milhões de pessoas sem acesso a coleta e tratamento de esgoto e 35 milhões sem acesso a água tratada

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O déficit de infraestrutura de saneamento básico no Brasil é assustador. O Brasil ainda tem 100 milhões de pessoas sem acesso a coleta e tratamento de esgoto e 35 milhões sem acesso a água tratada. Isso equivale a 48% da população brasileira sem acesso a coleta e tratamento de esgoto e 18% sem acesso a água potável.

A situação está muito pior do que países como México, Chile, Uruguai e Peru. As consequências são enormes; por exemplo, estima-se que as doenças decorrentes da falta de esgotamento sanitário tenham custado ao Sistema Único de Saúde (SUS) cerca de R$ 1 bilhão nos últimos cinco anos. Os maiores déficits se concentram nas Regiões Norte e Nordeste do país. 

Várias razões explicam esse enorme déficit de investimentos no setor. O Brasil é um país federativo e decidiu que a titularidade dos serviços de saneamento básico deveria ser confiada às autoridades mais próximas dos cidadãos, neste caso, os municípios, tendo os governos estaduais desempenhado um papel crítico no planejamento e cofinanciamento do setor.

No entanto, isso gerou dois problemas: as regras divergiam de um município para outro; e o município, como regulador, muitas vezes ficava sujeito a interferências políticas. Este contexto, em geral, torna o ambiente difícil para criar nos investidores uma confiança quanto aos parâmetros-chave para possíveis concessões –por exemplo, a estabilidade das tarifas e os limites de desempenho.

Há anos, a solução para este dilema tem sido reforçar o papel do serviço público em escala na prestação de serviços de saneamento básico, principalmente por meio de empresas estaduais e operadores públicos que, juntos, representam 94% da oferta total.

O lado positivo foi que a expansão dos serviços não ignorou as áreas carentes, pois os formuladores de políticas garantiram seu custeio a partir de subsídios cruzados com áreas mais ricas (presumindo-se, obviamente, que os subsídios seriam bem gastos e direcionados corretamente aos mais pobres).

A desvantagem, no entanto, foi o fato de poucos investimentos privados se concretizarem no setor, que acabou sendo financiado, em sua maioria, por investimentos de capital público e tarifas (relativamente baixas) que costumam cobrir, às vezes, os custos recorrentes.

As empresas públicas investem em média 18% da receita, a maior parte (57%) financiada com recursos próprios, em comparação com atores do setor privado, que apresentam os melhores desempenhos e investem 35% da receita, a maior parte financiada por dívida. 

Além disso, a estrutura de governança de muitas empresas públicas, às vezes sujeitas a regras mais lenientes, tem sido menos robusta, o que se traduz em ineficiência nos serviços prestados. A maioria das empresas públicas de saneamento básico também têm dificuldades em arrecadar recursos financeiros suficientes para cumprir as metas de recuperação de custos e enfrentam custos crescentes de mão-de-obra e verbas rescisórias.

Neste contexto, a lentidão na ampliação do acesso aos serviços de saneamento básico deveu-se aos poucos investimentos de capital disponíveis ao longo dos anos para expandir e garantir a qualidade dos serviços.

Além do mais, a recente crise econômica fez secar o investimento público e neste contexto as metas do Plano Nacional de Saneamento Básico, de aumentar a cobertura de acesso a serviços de água e esgoto para 99% e 92% (respectivamente) até 2033, serão quase impossíveis de alcançar.

O país precisaria investir cerca de R$ 26 bilhões (0,4% do PIB) por ano pelos próximos 14 anos para atingir as metas, quando, na verdade, tem investido apenas R$ 12 bilhões (US$ 2,7 bilhões) por ano nas últimas duas décadas.

Para aumentar a capacidade de investimento do setor por meio da participação privada no financiamento, o Governo Federal propôs o Projeto de Lei 13.529 visando:

1) fortalecer a Agência Nacional de Águas (ANA) como órgão regulador de referência para o setor2 em âmbito nacional;

2) fazer com que os municípios e estados sigam as regras federais de referência para ter acesso a recursos federais e assistência técnica;

3) fazer cumprir os contratos de concessão, assinados após uma licitação competitiva envolvendo empresas estaduais e operadoras privadas.

A lei estipula que os prestadores de serviços são responsáveis por fornecer e fazer a manutenção de suas infraestruturas; também exige novos investimentos para ampliar a infraestrutura e atender ao crescimento da população, principalmente em áreas urbanas.

Além disso, trata de novos incentivos (contratos baseados em desempenho ou transferências para apoiar ações de redução e controle de perdas de água) e estruturas de coordenação institucional, baseadas nos novos e complexos desafios enfrentados pelo setor hídrico, onde os riscos associados à mudança climática e escassez de água são mais preponderantes.

A lei proposta, no entanto, exigirá um enorme esforço de implementação. A ANA precisará assumir a nova função de criar os princípios de regulamentação de um setor, para esta, desconhecido, exigindo um fortalecimento institucional e, portanto, o aprimoramento específico das capacidades administrativas para o setor.

Aspectos como, por exemplo, a qualidade dos projetos de infraestrutura de recursos hídricos e a avaliação de viabilidade das intervenções de economia circular (tratamento de águas residuais, reciclagem, aproveitamento dos recursos) nos processos de planejamento local precisarão ser reforçados. Além disso, do ponto de vista econômico, as pequenas cidades e áreas rurais com baixa cobertura provavelmente continuarão a não atrair muitos investidores privados; por isso, será difícil encontrar concessões para operar nessas áreas.

Essa situação pode ser mitigada, em parte, na fase de estruturação da concessão, mas em alguns casos será necessário investimento público em combinação com instrumentos de subsídios direcionados para reduzir o ônus econômico sobre os governos municipais e as populações mais pobres no custeio de investimentos e custos recorrentes. Fortalecimento institucional dos municípios e reguladores estaduais deverá ser considerado.

As melhorias no uso racional e eficiente na gestão da água deverão ser reforçadas para lidar com o problema de escassez, promover a sustentabilidade dos recursos hídricos e garantir, em paralelo, a qualidade boa da água fornecida pelas concessionárias a seus clientes.

Essa questão tem se tornado cada vez mais relevante, visto que os problemas de segurança hídrica têm sido agravados pela mudança climática; quase metade dos municípios brasileiros teve problemas com inundações e 50% dos municípios enfrentaram secas no período de 2003 a 2016. 

Incertezas em relação a qualquer um dos aspectos citados aumentará o risco da concessão, que tem como base os retornos financeiros esperados pela concessionária, que, por sua vez, aumentará as tarifas para os consumidores.

O que importa para alterar o arranjo atual, portanto, não é apenas a existência de uma lei, mas como ela será implementada, considerando-se as disposições necessárias para garantir a recuperação adequada dos custos e práticas sustentáveis de concessões.

As concessões não são nenhuma panaceia, mas configuram mais um instrumento que, se bem implementado, pode ajudar a trazer serviços de água e esgoto de maior qualidade e quantidade para todos os brasileiros, num cenário de crescentes incertezas e riscos econômicos.

Mais especificamente, se a lei for implementada com efetividade, haverá uma nova estrutura disponível para lidar com riscos financeiros, definindo com maior clareza a alocação entre a entidade privada, o proprietário do ativo e as empresas públicas de saneamento básico, incluindo a solução de arbitragem.

Colaborou Christian Borja-Vega, economista sênior do Banco Mundial
 

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