Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Eliane Trindade

'Quanto vale tirar crianças do tráfico?', diz fundadora da Casa do Zezinho

Instituição beneficiou cerca de 20 mil jovens do Capão Redondo, na zona sul de SP, em 24 anos

“Quem tirou 20 mil crianças da rua fui eu.” É assim que a pedagoga Dagmar Rivieri, 64, a tia Dag, responde àqueles que dizem que a Casa do Zezinho, que criou há 24 anos no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, não é sustentável financeiramente. 

“Eu odeio essa palavra. Nós somos sustentáveis, sim”, indigna-se a finalista do Prêmio Empreendedor Social 2011 e mentora de um projeto social que virou referência no atendimento de jovens em situação de vulnerabilidade social em uma das regiões mais violentas da capital paulista. 

Depois de ter que cortar vagas em oficinas e projetos em 2017, a iniciativa mantém hoje 1.200 pessoas de todas as idades em atividades educacionais, de arte, lazer, saúde e geração de renda. 

É mais uma prova de resiliência em meio à redução de investimentos na área social e no terceiro setor, seja por parte do poder público quanto da iniciativa privada. 

“Os três últimos anos foram um inferno astral”, admite tia Dag, no momento em que festeja a renovação com um importante patrocinador, o Instituto Nissan. “É uma parceria de cinco anos, com um olhar diferente e raro, de entender o todo e que para ter educação é necessário esporte, saúde, arte e integrar tudo isso.”

Ao receber a notícia no fim de março, a empreendedora social lembrou que cada R$ 1 investido no social significa um retorno de R$ 6 para a sociedade. “É investimento, não gasto. Como você quantifica o que significa tirar 20 mil crianças das ruas e saber que muitas delas não foram para o tráfico?”, indaga. 

A educadora lembra que quando chegou à região, então conhecida como “triângulo das mortes”, 17 pessoas eram assassinadas, em média, por dia. “A violência aqui diminuiu. Hoje é outra história. Os jovens têm outras perspectivas de vida. Podem sonhar, fazer faculdade.”

“Isso é impacto”, resume Rosane Santos, presidente do Instituto Nissan, em visita à Casa do Zezinho. “É pensando em perenidade e na consistência de investimento que vamos para o sexto ano desta parceria.”

Tia Dag lembra que educação sempre será um projeto de médio e longo prazo. “Não tem atalho.”

Pedagoga formada pela USP e seguidora do mestre Paulo Freire, ela se entusiasma para falar dos resultados de um trabalho baseado em uma metodologia própria –a pedagogia do arco-íris, em que cada cor significa um estágio a ser conquistado. 

Em tom provocador, ela discorre a seguir sobre uma trajetória de quem colocou as mãos na massa para diminuir as enormes desigualdades sociais do país com a arma da educação, desde os anos sombrios da Ditadura Militar. 

A seguir, provocações de uma brasileira que dedica sua vida a fazer de crianças condenadas a serem "Zé Ninguém" em alguém que sonha para além das misérias e das limitações de ter nascido em uma favela.

MEU DEDO POR UM LANCHE

Logo no começo do meu trabalho aqui, um menino chegou com o dedo quebrado e eu o levei ao ortopedista. Na volta, passei no McDonald’s, que naquela época não tinha aqui perto do Capão. 

No dia seguinte, apareceram outras três crianças com o dedo quebrado. Resultado: levei toda a turma para a lanchonete. 

Todo mundo ri quando eu conto essa história. Eu pergunto: 'Se eles quebram um dedo para comer um lanche, imagina o que fazem para ter outras coisas?'.

PUTA EM BRASÍLIA

Fui atrás de uma menina de 10 anos que estava se prostituindo no parque aqui perto. Perguntei: ‘Quanto você ganha?'. Ela respondeu: 'R$ 10'. E devolveu a pergunta: ‘Tia Dag, você nunca pensou em ser puta?’. 

Disse para ela que não, mas que se fosse me prostituir, ia ser puta em Brasília, mas não no parque, onde aos 12 anos ela estaria morta. Três dias depois, ela me procurou: ‘Eu quero ser puta em Brasília.’. Respondi: 'Ok, mas vai precisar estudar.'.

Aí entra o assistencialismo, era preciso ajudar aquela menina, afinal ela precisava daqueles R$ 10. Não vem dizer que não. Como é que a criança vai ler se não tem óculos? Hoje, aquela menina é dentista.

Isso é entender o ser humano e se colocar na pele do outro. Não se pode julgar. Por que está roubando? Falta grana? Falta roupa? Temos que oferecer uma saída.

ESCRAVIDÃO ACABOU?

Em palestras, gosto de perguntar quem tem empregada doméstica há mais de cinco anos. Todos levantam a mão. Eu questiono: 'Vocês não têm vergonha? Vocês não incentivaram ela a estudar, a fazer um novo curso, a abrir uma empresa de limpeza?'. 

A escravidão não acabou. Tem outro nome. É a lógica de quem quer perpetuar o subserviente, de que ao se incentivar o pobre a estudar, vai se perder a mão de obra barata. 

REFÚGIO & PUXADINHO

Eu escondia crianças ameaçadas pelo esquadrão da morte na minha casa aqui no Capão. A primeira tinha dois quartos, sala, cozinha e banheiro e nada mais. 

Hoje, os domínios da tia Dag se espalham por 4.000 m². É um monte de puxadinho, o quarteirão inteiro. Como vivi sempre em favela desde os 14 anos, aprendi a fazer puxadinho e a Casa do Zezinho hoje é cheio de ruelas, escadas, e sobe e desce. 

A Casa do Zezinho salva. Salva da vulnerabilidade, da vida que eles levam. Nosso papel é salvar a família, conversar com a mãe que está trabalhando, que agrediu a criança, que foi violenta. Não vou chegar matando com Conselho Tutelar. De repente, você descobre que todos os sonhos daquela mulher também foram jogados fora.

SEM 'PEDAGOGÊS'

Você não tinha essa geração “ai”: iPod, iPad, iPhone. Vamos botar isso para dentro. As escolas têm que falar essa linguagem. Vou morrer ensinando. Não tem outro jeito. Não tenho previsão de aposentadoria, não consigo. 

Sempre falo que o que precisa em educação é o “TBC”: Tira a Bunda da Cadeira. A Casa da Zezinho nunca esteve na zona de conforto. A gente discute muito, fala muito. Faz a integração com arte, saúde, esporte, lazer, cultura. O resultado é um ser humano do caralho. Isso mesmo, eu falo muito palavrão. Pode traduzir por uns seres humanos magníficos, extraordinários estes nossos Zezinhos.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.