Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu

Anthony Bourdain eletrizou e desafiou a audiência até na morte trágica

O chef e apresentador americano que se suicidou na sexta-feira (8) deixa pistas em 'A Ferida'

Ele tinha o poder. De comunicar, seduzir, inspirar, emocionar e se conectar.

É difícil a tarefa de escrever sobre o chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain depois de ler um obituário como o publicado no The New York Times, magistral desde o título: “The Man who Ate the World” (O Homem que Comeu o Mundo, em tradução livre). E ouso concluir: o homem que também foi engolido, deglutido pelo mundo.

Eu escrevi no sábado (9) pela manhã um post tardio sobre o suicídio dele noticiado na sexta-feira, que transcrevo aqui:

"A Ferida", texto de Anthony Bourdain, no livro "Em Busca do Prato Perfeito" (ed. Companhia das Letras, págs. 352), em que ele revela a dor de ser feliz e privilegiado em um mundo tão desigual e violento. Memórias de Saigon #ripbourdain 

"Já estava acostumado aos amputados, às vítimas do agente laranja, aos famintos, pobres, garotos de rua de seis anos de idade que você encontra às três da madrugada gritando "Feliz ano-novo! Olá! Bye-Bye!" em inglês, e depois aponta para suas bocas e faz "bum bum?".

Estou ficando quase indiferente aos garotos famintos, sem pernas, sem braços, cobertos de cicatrizes, desesperançados, dormindo no chão, em triciclos, na beirada do rio.

Mas não estava preparado para o homem sem camisa, com um corte de cabelo à la forma de pudim, que me detém na saída do mercado, estendendo a mão.

No passado ele sofreu queimaduras e tornou-se uma figura humana quase irreconhecível, a pele transformada numa imensa cicatriz sob a coroa de cabelos pretos.

Da cintura para cima (e sabe Deus até onde), a pele é uma cicatriz só; ele não tem lábios, nem nariz, nem sobrancelha.

Suas orelhas são como betume, como se tivesse mergulhado e moldado num alto-forno, sendo retirado pouco antes de derreter por completo.

Mexe seus dentes como uma abóbora de Halloween, mas não emite um único som através do que foi um dia, uma boca.

Sinto um murro no estômago. Minha animação exuberante dos dias e horas anteriores desmorona. Fico paralisado, piscando e pensando na palavra napalm, que oprime cada batida do meu coração.

De repente nada mais é divertido. Sinto vergonha. Como pude vir até esta cidade, até este país por razões tão fúteis, cheio de entusiasmo por algo tão...sem sentido, como sabores, texturas, culinária?

A família daquele homem deve ter sido pulverizada, ele mesmo transformado num boneco desgraçado, como um modelo de cera de madame Tussaud, a pele escorrendo como vela pingando.

O que estou fazendo aqui? Escrevendo um livro de merda? Sobre comida? Fazendo um programinha leve e inútil de tevê, um showzinho de bosta? A ficha caiu de uma vez e fiquei me desprezando, odiando o que faço e o fato de estar ali.

Imobilizado, piscando nervosamente e suando frio, sinto que todo mundo na rua está me observando, que irradio culpa e desconforto, que qualquer passante vai associar os ferimentos daquele homem a mim e ao meu país.

Dou uma espiada nos outros turistas ocidentais que vagueiam por ali com suas bermudas da Banana Republic e suas camisas pólo da Land´s End, suas confortáveis sandálias Weejun e Bierkenstock, e sinto um desejo irracional de assassiná-los. Parecem malignos, comedores de carniça.

O Zippo com a inscrição pesa no meu bolso, deixou de ser engraçado, virou uma coisa tão pouco divertida quanto a cabeça encolhida de um amigo morto. 

Tudo o que comer terá gosto de cinzas daqui pra frente. Fodam-se os livros. Foda-se a televisão. Nem mesmo consigo dar algum dinheiro ao coitado. Tenho as mãos trêmulas, estou inutilizado, tomado pela paranoia.

Volto correndo ao quarto refrigerado do New World Hotel, me enrosco na cama ainda desfeita, fico olhando para o teto com os olhos cheios de lágrimas, incapaz de digerir ou entender o que presenciei e impotente para fazer qualquer coisa a respeito.

Não saio nem como nada pelas 24 horas seguintes. A equipe de tevê acha que estou tendo um colapso nervoso. 

Saigon...Ainda em Saigon. 

O que vim fazer no Vietnã?"

O relato acima foi postado às 9:55 e logo viralizou. Até o momento em que concluo esta coluna, o post teve mais de 2.000 compartilhamentos.

Mais uma prova do quão certeira era a escrita de Bourdain e como era imensa a sua capacidade de conexão com o leitor de seus deliciosos livros e artigos. Enfim, uma figura carismática capaz de se conectar com telespectadores ao redor do mundo.

Unidos pelas redes sociais (recebi de volta o meu texto do Facebook também pelo WhatsApp enviado por vários amigos), legiões de fãs de Bourdain mostravam como se sentiam próximos de suas contradições e fraquezas, assim como dos seus gestos de coragem e de solidariedade.  

Que sujeito! O cara foi gravar um programa sobre comida em meio aos famintos do Haiti. Dividiu um noodle com cerveja gelada em uma mesa de plástico com Barack Obama no Vietnã. Veio a público fazer um mea-culpa de ter contribuído para uma cultura machista que acoberta e dificulta denúncias de assédio e abuso sexual por parte das mulheres.

Bourdain demonstrou ainda todo o seu apreço e orgulho pela coragem da namorada Asia Argento, 42, ao denunciar por estupro Harvey Weinstein, o outrora magnata de Hollywood, que a atriz e diretora italiana declarou usar o aclamado Festival de Cannes como "território de caça", cenário do abuso sexual que relata ter sofrido quando tinha 21 anos.

São tantos Bourdain e todos tão interessantes. Era um sujeito que falava palavrão, desafiava o politicamente correto, exibia suas tatuagens e não escondia sua condição de ex-adicto em heroína. 

Da mesma forma, esbanjava humanidade e sensibilidade social como ativista, ao usar a sua voz potente de comunicador para levar mundos e personagens desconhecidos para sua audiência global.

Aos 61 anos, ele escolheu morrer em um cenário glamouroso: na banheira de um hotel de luxo na França, durante uma das inúmeras viagens de um trabalho invejável e único, no que parecia ser o auge de uma vida intensamente vivida e de muitos sucessos.

Um roteiro incompatível com a ideia de suicídio. Até na morte Anthony Bourdain foi ele mesmo: alguém que veio ao mundo para saboreá-lo até o fim, mesmo diante de um final abreviado por razões que em “A Ferida” o autor apenas sugere.

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