Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu

Os filhos doutores da faxineira Carminha, mãe e avó no Brasil de Mourão

'Senti vontade de esfregar os diplomas na cara do general', diz em resposta ao vice de Bolsonaro

A faxineira Maria de Castro e Silva, 58, custou a acreditar quando leu que o general da reserva Hamilton Mourão (PRTB), vice na chapa de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência, afirmou que famílias pobres “sem pai e avô, mas com mãe e avó” são “fábricas de desajustados” e fornecem mão de obra ao narcotráfico.

“Senti vontade de pegar os diplomas dos meus quatro filhos e esfregar na cara dele”, diz Carminha, como é conhecida a baiana que criou sozinha a escadinha de rebentos, todos com formação superior.

Marisa, 40, é formada em contabilidade. Marivaldo, 39, graduou-se em direito pela USP. Sandra, 38, cursou geografia e é professora universitária em Alfenas (MG), enquanto Fábio, 37, diplomou-se em processamento de dados.

Os títulos são motivo de orgulho para a migrante nordestina, nascida em Correntina (BA), que sustentou a filharada trabalhando sem descanso. 

Carminha, que há 15 dias deu entrada nos papéis da aposentadoria, conta que de segunda a sexta trabalhava na limpeza de uma escola e complementava a renda fazendo faxina em casa de família aos sábados e passando roupa de terceiros aos domingos. 

“Essa luta durou mais ou menos 15 anos, a partir do momento que tomei coragem e tive segurança para deixar um marido violento. Fui embora com a ajuda de Deus e mais ninguém. Não teve cesta básica nem bolsa família. Foi meu esforço.”

Por isso, a indignação com a frase do general. “É um absurdo esse Mourão generalizar assim. Tem muita gente honesta criada só por mães e avós!”, diz ela, porta-voz de um fenômeno de dimensões enormes no Brasil: famílias chefiadas por mulheres. 

Basta ver os dados oficiais: o número de lares brasileiros comandados por mulheres saltou de 23% para 40% entre 1995 e 2015, segundo a pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Com base nos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), a sondagem mostra que em 34% destas famílias há a presença de apenas um cônjuge. 

HEROÍNAS DA RESISTÊNCIA

Números que evidenciam o protagonismo de mães e avós forçadas por várias circunstâncias a criar sozinhas filhos e netos. Heroínas da resistência que, em sua maioria, não puderam compartilhar a responsabilidade com pais ausentes. Homens que fizeram filhos, mas não os honraram nem os viram crescer.

“Se tivesse criado meus filhos com o pai deles, eles não seriam o que são hoje”, afirma Carminha, avó de quatro netos. A figura paterna era referência negativa quando ela conseguiu se separar aos 27 anos. “Meu caçula tinha seis anos. Todos eram pequenos e nunca recebi pensão.”

Recebia ameaças. “O pai dos meus filhos bebia muito. Era violento, agressivo. Comecei a apanhar dele desde a minha primeira gravidez, ameaçada de ponta de faca. Foram dez anos apanhando.”

O emprego de faxineira com carteira assinada em uma escolinha foi o que lhe deu segurança de “catar os filhos e se livrar do pesadelo”. 

Além de não ajudar no sustento dos filhos, o ex-marido continuou a dar dor de cabeça por um tempo. “Ele morava perto, ia na minha casa, xingava, batia nas crianças. Só parou quando fiz um Boletim de Ocorrência e fui no juiz. Tive sossego quando disseram que iam prender ele.”

A entrada no mercado formal de trabalho também abriu os horizontes da faxineira, que concluiu o ensino médio quando os filhos já estavam na faculdade. 

“Só fui começar a ver o quanto o grau de estudo era valioso ao trabalhar numa empresa. Percebi que aqueles que tinham diploma trabalhavam menos e tinham melhores salários. Fui abrindo os horizontes.”

Mesmo sem tempo para ir às reuniões de escola, sempre cobrava a lição de casa e boas notas da prole. “Vocês têm que que ir para escola, estudar”, era o mantra dentro do barraco de madeira da família.  

Os filhos estudavam e trabalhavam. Valdo, por exemplo, desde os nove era ajudante na feira, foi auxiliar de pedreiro e entrou na Faculdade de Direito da USP após estudar em escolas públicas e fazer o cursinho pré-vestibular da Poli, que emendava com uma rotina de office-boy. 

DA FAVELA À ESPLANADA

Em setembro de 2011, Marivaldo de Castro Pereira virou secretário nacional da Reforma do Judiciário cargo de segundo escalão na esplanada dos ministérios em Brasília. O filho de Carminha hoje tenta se eleger senador pelo PSOL do Distrito Federal.

"Ele sempre gostou de política. Quando tinha 11 anos, uma amiga me disse que Valdo um dia ia ser presidente do Brasil.” 

Olhando em retrospecto sua trajetória, Carminha se considera uma mãe vitoriosa. “Minha autoridade e meu exemplo fizeram tudo dar certo.” 

E aproveita a reportagem para mandar um recado ao general Mourão: “A mulherada está arrasando hoje em dia. Carregando muito nas costas. Queria sentar na frente dele e dizer todas estas coisas.” 

Uma forma  também de chamar à responsabilidade homens que não deram as caras para cuidar e orientar filhos, planejados ou não.

Afinal, "é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”, como diz um provérbio africano. Aldeias habitada por homens e mulheres, pais e mães, avôs e avós. 

Uma aldeia que também deveria se chamar Brasil. Não a pátria amada de um general e seus discursos sobre "fábricas de desajustados". Mas um país habitado por tantas mulheres chamadas de mães e avós por filhos orgulhosos e gratos de terem sido paridos, alimentados, cuidados e encaminhados por tantas Carminhas. 

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