Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Ex-garimpeiro, João de Deus já foi preso, chorou ao ver cheque e atraiu multidões

Médium que atende em Goiás é alvo de denúncias de crimes sexuais; ele nega

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O empresário Marcus Elias, dono da Laep Investments, ex-controladora da Parmalat e da Daslu, é uma das figuras mais próximas de João de Deus. Foi ele quem apresentou ao médium personalidades internacionais como a modelo Naomi Campbell e fez pontes para que os ex-presidentes Lula e Dilma e tantos outros políticos de diferentes matizes ideológicos recebessem tratamento espiritual pelas mãos do homem que fez de Abadiânia (GO) uma Meca de peregrinos.

Gente de todas as classes sociais e dos mais diversos cantos do planeta que batia às portas da Casa de Dom Inácio de Loyola (padre jesuíta cujo espírito João diz incorporar) em busca de milagres e alívio para todos os tipos de males e dores.

Folha procurou Elias para que pudesse comentar as denúncias de mais de duas dezenas de mulheres que acusam o médium de abuso sexual quando buscavam cura para si ou familiares. “As pessoas próximas ao sr. João estão abaladas, eu inclusive. Entendo seu interesse jornalístico, mas vou preferir aguardar os acontecimentos para talvez ter uma opinião”, respondeu o executivo, pelo WhatsApp, em meio a uma viagem ao exterior.

O advogado de João de Deus, Alberto Toron, afirmou nesta segunda-feira (10) que o médium recebeu com “indignação” a notícia de que é acusado de crime sexual e está à disposição das autoridades para esclarecimentos.

A posição de Elias é cautelosa e de alguém que acompanha de perto a trajetória do médium há mais de três décadas. O empresário tem uma visão peculiar de João de Deus, a quem define como uma espécie de “Forrest Gump brasileiro”, alusão ao personagem vivido por Tom Hanks em filme de 1994 que, ao acaso, consegue participar de momentos cruciais da história, como a Guerra do Vietnã e o Watergate. “Ele esteve no centro de acontecimentos ou ao lado de personalidades importantes da história do Brasil das últimas quatro, cinco décadas.”

O executivo conversou com a Folha em janeiro e fevereiro deste ano para um perfil mais aprofundado do médium, quando do lançamento do documentário “João de Deus – O Silêncio É uma Prece”, dirigido por Candé Salles. A reportagem dependia de uma entrevista com João de Deus, que chegou a concordar em falar, mas acabou não agendando o encontro.

Nas conversas preliminares, Elias resumiu fatos e relatos que mais o impressionaram no contato com João de Deus. Para ele, um homem simples, com jeitão caipira, que viu sua vida se transformar a partir de uma mediunidade capaz de convencer céticos como o próprio executivo. “As manifestações começaram aos oito anos. Ele passou a vida inteira fazendo isso. Tem carisma. Atrai gente. Não é um homem desse mundo. É meio fora do ar”, avalia Elias.

É preciso entendê-lo dentro do contexto de um estado de Goiás profundo. “É um caboclão simplório, que fala errado, mas não é bobo, e tem fé inabalável em um Deus que vai prover tudo no final.” Como tantos outros, Elias chegou a Abadiânia em busca de tratamento para a ex-mulher, diagnosticada com um câncer no seio há 30 anos. “Quando entramos na fila e vimos ele usando um canivete para fazer cirurgias, bateu um negócio, uma energia. Chegou a vez da minha mulher e ele disse que não ia fazer nada, pois ela estava curada.”

Elias conta que a cirurgia para extrair o tumor tinha data marcada, mas o nódulo já não estava mais lá. O executivo foi morar nos Estados Unidos e só voltaria a encontrar João de Deus uma década depois. “Aquele homem não me saía da cabeça. ”Ele relata um segundo encontro também impactante com um João de Deus choroso, em uma salinha, há 21 anos. Voltara a Abadiânia para fazer uma contribuição. “Fiz um cheque. Quando ele viu o valor, que não era pouco, aquele homenzarrão começou a chorar.”

Segundo Elias, o médium lhe disse que tinha uma hipoteca do mesmo valor vencendo naquele dia. “Um agiota ameaçava tomar a fazenda dele.” O empresário passou a ir a Abadiânia com frequência e nunca sozinho. “Levei muita gente, milhares de pessoas nesses 30 anos.” O que viu acontecer na Casa de Dom Inácio de Loyola é definido por Elias como “inexplicável”. “É algo além do meu nível de compreensão da vida”, afirma. “Fato é que muita gente consegue seus desígnios: passar em concurso, casar, ter filho, curas. Por que alguns conseguem e outros não?”

Em média, 2.000 pessoas eram atendidas por dia em Abadiânia, três vezes por semana, desde 1976, quando a casa foi inaugurada. “Isso significa 24 mil pessoas por mês, 290 mil por ano”, contabiliza Elias. Diante de multidões em busca de milagres e vivências, o empresário diz que o coração se abre. “Pessoas céticas, que não acreditam em nada, e sensoriais, que acreditam em tudo, chegam ao mesmo denominador.”

Elias estava em Abadiânia quando a apresentadora americana Oprha Winfrey registrou em março de 2012 as sessões de cura conduzidas por João de Deus, o que aumentou ainda mais a projeção internacional do médium goiano. “Ela precisou ser segurada para não cair no chão”, recorda-se Elias, que também diz sentir a perna tremer quando assiste aos transes e às incorporações espíritas. “Dá uma trepidação ficar do lado dele assim.”

Para além dos poderes mediúnicos, Elias também enxerga o homem, João Teixeira de Farias, 76, e suas contradições. Antes da fama, João de Deus chegou a ser preso por charlatanismo. “Nos anos 1970, ele já acordou de transe dentro da cadeia. Ficava preso até que aparecesse alguém graúdo e o tirasse. Passou a andar com uma pastinha com cartas de delegados, deputados, dizendo que era uma pessoa idônea”, relata Elias.

No início de sua trajetória, o médium sofreu denúncias de exercício ilegal da medicina junto ao Conselho Regional de Medicina de Goiás. Nenhuma delas foi capaz de barrar o afluxo de peregrinos, crentes e descrentes, ao município goiano, que passou a depender desta importante receita turística.

Até assumir a face pública de curador e virar João de Deus ou João de Abadiânia, o médium viveu uma série de episódios controversos, alguns dignos de filme de aventura. Na juventude, João trabalhou em circos no interior, sempre no papel de toureiro. É lembrado pelo amigos de juventude no interior de Goiás como um cara de muitas proezas, que gostava de pinga e rapariga.

No Exército, serviu como alfaiate e ganhou fama de escapar tanto de onça quanto de tiro de guerrilheiro. “Os militares colocavam ele à frente das buscas”, relata Elias, sobre a presença de João na região do Araguaia, no Pará, e Imperatriz, no Maranhão, durante o Regime Militar.

Os poderes paranormais já atraiam seguidores e encrencas. Corria a lenda de que ele descobria veios de água e de minérios no subsolo. No início da década de 1980, lá foi João para Serra Pelada, eldorado que levou milhares de garimpeiros e aventureiros para o Pará. Na gíria do maior garimpo a céu aberto do mundo, João de Deus “bamburrou”, ou seja, descobriu muito ouro, ficou rico. “Diziam nos barrancos: ‘Pega o João pra achar ouro’. Ele estava entre os garimpeiros que encontraram a maior pepita na época, de 260 kg”, conta Elias. 

Outros 300 kg de autunita, minério com alto teor de urânio, levou João à prisão, em novembro de 1985, sob acusação de contrabando. Em sua defesa, ele alegou não saber se tratar de material radioativo e que só era o dono da caminhonete contratada para levar a carga até uma pista de pouso de onde um aviãozinho faria o transporte até o Iraque. “A PF prendeu todo mundo. Ele foi processado, mas provou que era só o motorista”, afirma Elias.

Os outros dois envolvidos teriam morrido anos depois em decorrência do contato prolongado com a radiação. “João também dormiu em cima do material e não teve nada.” O médium ainda escapou ileso da acusação de “atentado ao pudor” e “crime de sedução” em um caso envolvendo uma adolescente de 16 anos. Processo extinto por insuficiência de provas. Mais um lance que o fazia crer, como diz no documentário “O Silêncio É uma Prece", de que nada o deteria. “Estou nesta missão há mais de 60 anos, tenho fé que chego aos 90 anos de missão se Deus me permitir.”

Curado de um câncer, que tratou no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, ele conclui a fala dizendo esperar ver a filha caçula, então com três anos, ingressando no curso superior. Na plateia da première do longa documental no Museu da Imagem do Som, em 29 de janeiro, estava o cardiologista Roberto Kalil, que fez parte da equipe que tratou do médium. “Foi um sinal de grandeza e humildade a busca de tratamento convencional. Ele é um bom paciente. Segue tudo que tem que ser feito. É o que ele diz para os doentes que o procuram: ‘Não abandonem o tratamento médico’”, afirmou Kalil, ao final da sessão que reuniu várias personalidades, entre elas Thereza Collor, Priscila Fantin e Paulo Skaf.

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