Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Do Jardim Ângela a Londres: DJ vira empreendedor na quebrada

Ex-motoboy que fez do hip-hop meio de vida é porta-voz da economia criativa na periferia

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Seja na quebrada, seja em Londres, ele usa a língua universal do hip-hop, passaporte para além das fronteiras delimitadas pela vulnerabilidade social de quem há 38 anos nasceu no Jardim Ângela, periferia de São Paulo.

DJ Bola, a alcunha com a qual Marcelo Rocha desfila pela vida desde os 14 anos, nasceu e cresceu no mesmo CEP na zona sul paulistana, endereço que por décadas era seguido do aposto “bairro mais violento do mundo”.

Sob influência do movimento de cultura urbana surgido entre afro-americanos e latinos da periferia de Nova York na década de 1970, o ex-motoboy paulistano filho de nordestinos adotou o estilo e a filosofia dos rappers como antídoto contra a violência e a marginalidade.

Com 1,82 m e 124 kg, dreadlocks no cabelo, bermudão e camisas soltas, Bola se destaca na paisagem também como embaixador de outro movimento: o da economia criativa como motor de desenvolvimento das quebradas mundo afora.

De 17 a 24 de maio, o fundador da produtora cultural A Banca compartilhou sua experiência de empreendedorismo na e para a base da pirâmide na Semana Global Dice (Developing Inclusive and Creative Economies).

O programa do British Council, que visa promover uma economia criativa e mais inclusiva no Reino Unido e em cinco países, reuniu na capital inglesa 130 representantes de Brasil, Paquistão, Egito, Indonésia e África do Sul.

“Fomentamos o desenvolvimento de negócios culturais com impacto social em cinco economias emergentes”, explica Becky Schutt, diretora global do programa Dice. 

Ela deu as boas-vindas aos empreendedores sociais à frente de negócios que receberam apoio financeiro do Dice nesta primeira fase do programa. Na imersão de uma semana na capital inglesa, eles interagiram com mentores, colaboradores e parceiros para discutir resultados e desafios.

“Vamos apresentar aqui soluções criativas para resolver problemas sociais”, continuou a mestre de cerimônias ao abrir o workshop intitulado “Playing to a Different Tune” (Tocando em uma sintonia diferente, em tradução livre).

Momento da programação na qual o DJ Bola compartilhou sua experiência no Brasil com a inglesa Bridget Rennie, da Streetwise Opera, um projeto que leva ópera para as ruas; o paquistanês Zeejah Fazli, músico e produtor do filme “Indus Blues”; e o ativista e documentarista Mark Johnson, do projeto Playing for Change.

 “A Banca se posiciona como uma produtora cultural de impacto social, que utiliza música, cultura hip-hop, educação popular e tecnologia para fortalecer o empreendedorismo nas periferias”, explicou Bola a uma plateia atenta no fórum internacional Good Deals + Beyond Good Business. 

“Nossa missão é romper barreiras culturais, sociais, econômicas, conectando pessoas de diferentes realidades”, afirmou o brasileiro, no espaço para apresentação de “cases” internacionais de sucesso em diferentes latitudes.

CULTURA HIP-HOP 

O DJ, que faz parte também da banda Os Abôrigens, fez da música e da rima forma de contestação e meio de vida. 

“Eu tinha dez anos quando ouvi um rap pela primeira vez e me apaixonei de cara pela batida, pela letra”, recorda-se Bola, sobre o impacto do disco “Hip-Hop Cultura de Rua”, que marca a chegada do movimento ao Brasil. 

Momento em que era apresentado ao som do rapper Thaíde cantando “Corpo Fechado”. “Me atire uma pedra/ Que eu te atiro uma granada...  Meu nome é Thaíde/ Meu corpo é fechado e não aceita revide”. 

A conversão final viria com o álbum “Holocausto Urbano” do Racionais MC’s. “O rap bateu tão forte e me fisgou de tal forma que passou a definir quem eu sou. Eu me senti representado na fala, na música”, diz Bola. 

“Estava buscando algo que me fizesse ir além do meu quarteirão, das coisas que estavam dadas e impostas a quem como eu vivia no Jardim Ângela.”

Naquele emaranhado de becos e vilas que de jardim só tinha o nome, Bola nasceria também como empreendedor social, enquanto perdia colegas de geração para a guerra urbana travada nas redondezas. 

No Ângela e adjacências, A Banca surgiu como uma promotora de festas de ruas. “A gente colocava um caminhão atravessado, ligava o som e a rua lotava. Eram 500, 600 pessoas.”

Na hora de achar um nome para o fenômeno, escolheram Banca. "Dá ideia de coletivo, um grupo de meninos que curte hip-hop, são gente fina e não estão matando ninguém”, define Bola.

Passados 21 anos, A Banca se se espraia em três frentes: oficinas culturais, estúdio fonográfico e braço de educação e empreendedorismo. Oferece serviços para escolas particulares, fundações e institutos.

“Nossa primeira grande inovação foi nos posicionarmos como canal de conexão entre diferentes realidades. Conseguimos atravessar as pontes da cidade de São Paulo”, avalia o DJ empreendedor, após promover mais de 50 workshops em escolas particulares, entre as mais elitistas da capital paulista.

“É uma forma de dialogar, desconstruir estereótipos sobre quem vive na periferia”, explica. “A ideia é que aqueles jovens quando forem adultos possam fazer diferença em suas tomadas de decisão e tenham um olhar mais empático e justo.”

NEGÓCIOS DA PERIFERIA

Em 2018, Bola deu um passo à frente e criou a Aceleradora de Negócios de Impacto da Periferia. “É mais uma inovação, um programa exclusivo de aceleração voltado para empreendedores que são e estão nas periferias oferecendo serviços ou produtos que tenham o propósito de transformação socioambiental positiva.”

O DJ se uniu à Artemisia e ao Centro de Empreendedorismo da Fundação Getúlio Vargas para fazer acompanhamento individual de dez negócios da região. Cada um recebeu capital-semente de R$ 20 mil, a fundo perdido, para alavancar ou melhorar áreas de atuação.

É o caso de Michelle Fernandes, da Boutique Kriola, que começou com R$ 150 no Capão Redondo. “Ela não se sentia representada pelas roupas e pelos acessórios do mercado e decidiu oferecer um produto voltado para mulheres negras.” Já está em diversos estados e vende até para outros países, segundo ele. 

Casos que vão ser destaque do 1º Fórum Internacional de Negócios de Impacto da Periferia, que a aceleradora vai realizar no Jardim Ângela em 8 de agosto. 

Será uma oportunidade para Bola reencontrar a inglesa Jacqueline Bleicher, da Global Urban Design, sua contraparte no Dice.

A ideia do programa é aproximar empreendedores de países emergentes de pares do Reino Unido.

Engatinhando no aprendizado de inglês, Bola espera aprofundar a troca com a arquiteta em São Paulo. Nas andanças por Londres, ficou impressionado com o respeito aos artistas que se apresentam em ruas, praças e estações de metrô. 

"É impressionante a quantidade de gente fazendo música, performance, teatro, beatbox [percussão vocal do hip-hop, que reproduz sons de bateria com voz, boca e nariz], tá ligado?" 

Comprou um CD de uma artista de rua chamada Yo Bana, que viu se apresentando em frente à estação Tottenham Court Road. "Uma garota branquinha e loura que estava fazendo um rap incrível", elogia. Ele desembolsou cinco libras ( R$ 27) para trazer o trabalho da inglesa para casa. 

Depois de uma semana intensa em Londres, quando fez contato também com potenciais investidores, Bola sonha alto. “A gente se vê hoje como possível canal de fortalecimento de empreendedores que estão em situação de vulnerabilidade no mundo.”

A aceleradora que começou na zona sul de São Paulo e já começa a se expandir para o município, tem planos de chegar a outros estados nos próximos três anos.

“Posso levar essa mensagem à periferia, de que é possível viver do seu sonho por meio de economia criativa, da música, da cultura e proporcionar impacto social positivo independentemente de estar no Jardim Ângela, no Paquistão ou na África.”

A jornalista viajou a convite do British Council para participar da Semana Global Dice em Londres

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