Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Viver e amar com HIV há 25 anos: 'O vírus não mata o desejo'

Consultora e ativista, Silvia Almeida relata sua trajetória de mulher soropositiva na luta contra o estigma da Aids

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Ela aprendeu a viver com HIV. E a amar, a não julgar e a encarar a epidemia de Aids sem grandes dramas.

Há 25 anos, Silvia Almeida foi diagnosticada com o vírus. Em 1997, seu marido e pai de seus dois filhos, então com 14 e 4 anos, morria de Aids.

A então viúva transformou a herança maldita em luta e aprendizado.

Silvia Almeida, 55, não deixa que o HIV a impeça de viver e amar livremente
Silvia Almeida, 55, não deixa que o HIV a impeça de viver e amar livremente - Arquivo pessoal

Silvia fez mais do que sobreviver aos preconceitos, estigmas e medos que cercam a doença que afeta mais 860 mil brasileiros e 37 milhões de pessoas no mundo.

A hoje consultora da Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ Aids) e integrante do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas lista sete lições de sua longa e inspiradora trajetória de mulher soropositiva.

“Eu tenho 55 anos. Descobri que sou soropositiva aos 30 anos. São 25 anos desde o diagnóstico. Daqui a pouco eu vou ter mais idade com HIV do que sem.”

Não se trata de “sobrevida”, palavra que ela detesta, usada no começo da epidemia quando Aids era sentença de morte.

“É vida, com qualidade e em plenitude”, diz. Silvia se considera saudável, portadora de uma doença crônica e sob controle, graças aos avanços da ciência.

Condições que lhe permitiram trabalhar até se aposentar por tempo de serviço, casar novamente, retomar a vida sexual sem riscos, curtir filhos e netos. Tudo isso com a certeza de que tem ainda muito para viver.

Aceitar

“Meu marido morreu de Aids. Ele foi diagnosticado já doente, esse era o grande problema. Devia ter muito tempo de HIV.

Estava desenvolvendo Aids [teve uma série de doenças oportunistas em razão da perda do sistema imunológico e faleceu em decorrência de uma tuberculose] e partiu em dois anos. 

Recebi o resultado do meu teste em abril de 1994.  Tinha certeza de que ia ser positivo, apesar de não estar doente. Não usava camisinha. Ele estava doente, ia estar infectada também. Em um casamento de 14 anos, não se usa preservativo.

Era o começo da epidemia entre as mulheres, a gente começava a descobrir o que era uma transmissão sexual, que não existia grupo de riscos.

Todos estávamos vulneráveis. Mudavam os conceitos da epidemia.

Minha angústia foi esperar o resultado do exame do meu filho, que tinha um ano. A minha preocupação era com ele, de transmissão vertical [de mãe para filho]. Para meu grande alívio, ele não se infectou.

Eu tive parto normal, quando a criança tem contato com o seu sangue na hora do nascimento. Amamentei. Fiz tudo errado, porque eu não sabia.

Hoje, você tem exames e protocolos que testam antes e durante a gravidez; na hora do parto. Se são seguidos nenhuma criança precisa mais ser infectada. Penso que não era para meu filho ter HIV. Sou espiritualizada, acredito em destinos.

Eu resolvi que primeiro eu ia entender o HIV, aprender a viver com o vírus para depois poder falar sobre isso. Ao passo que fui melhorando, fazendo tratamento, ficando bem, sem aquele drama, aquele medo, consegui ir contando para os meus filhos e familiares.

Quando fui contar, levei para eles tranquilidade pela forma como eu já lidava com o HIV.

Faço tratamento? Faço. Tem cura? Não tem. Estou conseguindo viver apesar de tudo? Estou. Estou feliz? Estou. Estou saudável? Estou. Tudo isso faz diferença.

Quando você dá uma notícia ruim sem ter um mínimo de resolução, é muito complicado. Quando apresenta um problema que está sendo resolvido, é diferente.”

Não criminalizar

“Acho muito doloroso pegar alguém que você amou e dividiu sua vida e criminalizar essa pessoa.  

Ela pode não saber, como pode saber, que é soropositivo.  Pode confiar que não vai infectar o parceiro. Pode não contar por necessidade de ter alguém, por medo da solidão e da rejeição.

Enfim, o ser humano é muito diverso. Dentro dessa diversidade, você encontra de tudo. Pessoas fortes, como eu, que já chegam no primeiro encontro e diz que tem HIV. Mas tem pessoas que nunca vão conseguir contar.

A notícia cai como uma bomba dentro de casa. Fica aquela pergunta: Onde erramos? O que aconteceu? De onde veio? Por que veio?

Sinceramente, são perguntas sem respostas. 

Quando perguntei para meu marido o que tinha acontecido, ele me olhou e disse: ‘Eu não sei. Estou tão perdido quanto você’.

Ali, senti o que era o HIV e o que era Aids. As pessoas se infectam porque são vulneráveis.

Essa vulnerabilidade vem da nossa forma de viver a sexualidade. Muitas vezes o homem é criado nesse padrão machista que dava direito a ele de ter um caso extraconjugal.

Conheci muitas mulheres que se separaram, que odiaram seus companheiros, quando descobriram terem sido infectadas por eles.

Não consegui odiar o homem que eu amava. Consegui enxergar nele uma vítima, assim como eu. Ele não ia ver nossos filhos crescerem. Ele não conheceu os netos.

Ninguém infecta ninguém porque quer e muito menos infecta sabendo que a pessoa ia sofrer tudo que a Aids causava naquele momento. 

Querer saber quem te infectou ou culpar a pessoa tem muito a ver com a não aceitação. De colocar no outro a responsabilidade que é sua.

Se olharmos para trás, há 30 anos, quem tinha consciê ncia de HIV, do uso de preservativo?

Hoje pode-se cobrar mais. Cobrar o uso de preservativo, de relação desprotegida. O teste está aí, é rápido. Tem muito mais informação.” 

Fotos de arquivo pessoal de Silvia Almeida para a Rede Social
Fotos de arquivo pessoal de Silvia Almeida para a Rede Social - Arquivo pessoal

Viver

“Logo depois do diagnóstico, comecei a procurar alguma coisa que me ensinasse a viver com o HIV. Acabei conhecendo o GIV (Grupo de Incentivo à Vida). Ao frequentar as reuniões, aquilo foi tomando uma proporção grande. Via quantas mulheres sofriam, quantas pessoas eram despedidas de seus empregos. Era muito estigmatizante.

Fui aprendendo o quanto a gente não sabia nada, o quanto as pessoas sofriam por conta deste não saber.

Fui retomando minha vida conforme entendia o HIV. Que tinha que tratar, tomar cuidados, mas que a vida não podia nem devia parar por causa do vírus.

Um ano depois que fiquei viúva, fiz uma viagem com umas amigas para Porto Seguro. Todo mundo devia ir para a Bahia, quando descobre uma notícia ruim. Acabei conhecendo uma pessoa e tive um affair de férias.

Rolou insegurança. Era preciso negociar o uso de camisinha de cara. Não era o caso de contar [que é soropositiva]. Até porque ia ser coisa de alguns dias.

Percebi que existia sexo seguro, mas que era muito difícil de negociar. Eu consegui negociar.”

Amar

“Veio o entendimento de que o HIV não tira sua sexualidade, nem o desejo. É uma doença, é um vírus, precisar cuidar dela como manda o figurino, mas a vida tem que ser levada adiante.

E quanto mais saudável e feliz é a sua vida, mais isso se reflete em benefícios para o corpo. E para o tratamento, por consequência.

Depois daquele affair nas férias, conheci outra pessoa na ONG e ficamos juntos dez anos. Ele também era soropositivo.

Tive um casamento instável novamente, mas sempre usando preservativo.

Agora, tenho relacionamento sorodiferente [quando apenas um dos parceiros é soropositivo]. Meu atual marido não tem HIV. Estamos juntos há seis anos. Nos conhecemos no meu trabalho numa mineradora, ele é jornalista desta área.

Um dia, ele me chamou para fazer uma visita a Sorocaba, a cidade em que moramos hoje. Pensei: ‘Como vou para a casa de uma pessoa que não sabe que tenho HIV?’

Decidi que ia contar antes de sair com ele, que já era próximo. Mandei por e-mail uma reportagem que eu tinha participado. Ele leu e respondeu: ‘Isso não muda nada. Vamos nos conhecer’.

Ele não teve medo. O que afasta é o medo. Teve muita conversa. Como ter uma relação segura? O que é o HIV? Como pega? Como não pega? Como se previne?

O melhor é como não pega: no contato social, no beijo, no abraço. Havia todos estes fantasmas. De não compartilhar utensílios, copos, talheres.

Eu já era ativista, lutava contra preconceitos e estigmas. Era outro momento da epidemia. Para ele, foi ficando muito tranquilo.

No começo, nós nos relacionávamos de camisinha. Hoje, podemos não usar preservativo com segurança. Existe a questão do i=i (indetectável é igual a intransmissível).

Quando você faz o tratamento há mais de seis meses e a sua carga viral fica indetectável, ela está tão reduzida no seu sangue que não está circulando mais. Então, não transmite.

A gente se apoia neste estudo e na minha carga viral indetectável para dispensar o preservativo. Há cinco anos, ele faz teste uma ou duas vezes por ano. E continuamos um casal sorodiferente.

É importante falar sobre isso. Tira o estigma. A minha parte do cuidado é a minha medicação. Manter a minha carga viral indetectável. A gente também precisa cuidar de outras ISTs (Infeções Sexualmente Transmissíveis). Estamos sempre fazendo exames.

Encarei com tranquilidade voltar a fazer sexo sem preservativo. Eu me seguro no meu autocuidado que também protege o outro.”

Não julgar nem se julgar

“Temos vários perfis de pessoas soropositivas. Temos aquelas que conseguiram incluir o tratamento na sua rotina e vivem normalmente.

Temos ainda pessoas que se infectam e sofrem muito. Têm autopreconceito.

Elas não conseguem aceitar o HIV, levam isso para a sociedade e recebem preconceito de volta. Neste caso, o tratamento é mais difícil. A mente e o emocional influenciam muito nosso corpo.

Têm aqueles com muito medo e pouca informação. Preferem não fazer exame nunca. Preferem morrer sem saber. É muito complicado.

E ainda aqueles que não têm medo e se expõem de uma forma que não seria necessária. Aquela coisa: ‘Não vai acontecer comigo’.

São pessoas que não conseguem enxergar a vulnerabilidade.

Para um homem heterossexual soropositivo tem uma questão profunda que é a masculinidade. O fato de alguém minimamente pensar que ele é gay é muito forte.

Para a mulher, vem o autojulgamento. O que é que eu fiz de errado? Por que transei? Por que não usei camisinha?

Infelizmente, ainda se dá uma conotação moral muito grande para a Aids. Não importa se você é uma mulher livre com vários parceiros, a vida é sua. Ou se você é homossexual, usuário de droga. Não temos o direito de julgar. É esse julgamento que causa dor.”

Fotos de arquivo pessoal de Silvia Almeida para a Rede Social
Fotos de arquivo pessoal de Silvia Almeida para a Rede Social - Arquivo pessoal

Se tratar

“Não desenvolvi nenhuma doença oportunista, porque ela se oportuna da falta de defesa. Sempre me tratei e estive atenta à minha saúde.

O momento mais crítico foi a descoberta do HIV e a perda do meu marido. Nessa época, eu tive uma anemia muito grande e uma sinusite que me impedia de respirar. Fiquei internada uma semana depois que ele morreu.

De lá pra cá, eu nunca mais tive nada. Me aposentei após 32 anos de trabalho. O tempo maior que fiquei afastada da empresa foram dois meses, porque eu quebrei o pé.

Fui muito respeitada no trabalho na Anglo American e me beneficiei de uma política de cuidados para com os funcionários soropositivos. São direitos que muitos ainda não conseguem acessar nem brigar por eles.

Aos 55 anos, eu me preocupo com coisas da idade como osteoporose, gordura, colesterol, triglicérides. Problemas que viriam para qualquer um, mas vêm de forma mais intensa e preocupante para quem usa antirretrovirais, como nós.

Quero envelhecer saudável. Rezo todos os dias para o medicamento anti-HIV não fazer mal. São tantos anos tomando drogas fortes. Espero que meu fígado e rim segurem mais um pouquinho. Quero viver mais uns 20.

Penso na cura da Aids, cada vez que vejo uma medicação nova, um transplante que dá resultado, possibilidades novas de tratamento.

Quiçá daqui a 20 anos tenhamos a cura. Se eu estiver aqui, vou ficar muito feliz. Se eu já tiver ido, vou ser grata, porque a vida me trouxe um aprendizado humano muito grande. Conheci pessoas especiais, entendi a dor delas. Aprendi a não julgar nem discriminar.

Tenho um leque de amigos gays. Aprendi a respeitar a transexualidade, entender que as pessoas podem fazer outras escolhas. A Aids me trouxe muito crescimento. Talvez eu não fosse tão humana como sou hoje se eu não tivesse passado pela herança do HIV.”

Não educar

“Eu decidir me expor como soropositiva, porque eu estava em uma empresa que me protegeu, me acolheu e não me demitiu. Isso foi fundamental.

A partir do momento em que virei ativista, fui entendendo que muito sofrimento era causado porque as pessoas ignoravam a própria vulnerabilidade, ignoravam a forma como o vírus era transmitido.

Eu sou uma mulher heterossexual, tive um único casamento, vinha de uma família estruturada e era soropositiva. Quantas outras não poderiam ser como eu?

Isso foi me levando a querer passar informação. ‘Olha, eu tinha um casamento estável. Não é só por estar casada que você vai estar protegida. Meu marido era um cara legal, ótimo pai, excelente companheiro, não era usuário de drogas e morreu de Aids.’  

Resolvi ter visibilidade para passar esse alerta.

Caminhamos muito na tecnologia, nos exames, no tratamento, mas não evoluímos na educação sexual. Continuamos tratando a sexualidade como tabu.

Temos que falar abertamente de sexo seguro, autoconhecimento, machismo. Enquanto não se começar a resolver, de verdade, esses gaps, nunca vamos resolver a questão de prevenção como um todo.

Por favor, não venham proibir cartilha de educação sexual.

Demoramos tanto para conseguir dizer: ‘Você tem um corpo, seja com vagina, seja com pênis, esse corpo precisa ser cuidado’.

É preciso entender que o desejo nasce e morre com a gente. Enquanto não se olhar para todas estas questões com naturalidade, sexo será sempre do outro. A doença será sempre do outro.”

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