Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu Minha História Coronavírus

Em viagem nos tempos do coronavírus, visto é cancelado e hotel dá upgrade

Como a ida à Índia virou uma novela e um hotel em Dubai foi esvaziado por conta da pandemia e da ausência de turistas

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Dubai

O alerta chegou pelo celular no meio da tarde da quarta-feira (11), no horário do Brasil. Uma colega casada com um jornalista indiano radicado em São Paulo me enviou pelo WhatsApp um link com a notícia: “Índia suspende todos os vistos de turistas por causa do coronavírus”.

Até então, sem conexão de Wi-fi enquanto desbravava a área Al Seef e visitava o Museu das Ilusões, duas atrações turísticas de Dubai, eu tive a sensação de estar fora do planeta Covid-19.

A notícia de que a OMS declarara pandemia mundial e de que a Índia fechara suas fronteiras continentais em razão do novo vírus me transportaram para a realidade do crescimento exponencial do número de doentes e infectados e de um novo circuit breaker na bolsa de valores de São Paulo, diante da volatilidade do mercado de ações.

Era preciso abortar minha ida a Mumbai, marcada para segunda-feira (16), depois do périplo de seis dias a Dubai.

Após a press trip a convite da Emirates Airline, embarcaria rumo à Índia para fazer uma reportagem especial sobre programas de proteção à infância, que atendem crianças e adolescentes indianos vulneráveis à exploração sexual e ao trabalho infantil.

Com duas horas à frente no fuso horário, já passava da meia-noite em Dubai, era tarde para acionar o jornalista local que havia contratado na véspera para servir de intérprete em Mumbai.

Na manhã seguinte, confirmaria com meu colega indiano que as fronteiras do país estavam de fato fechadas para todos os estrangeiros e até para nacionais em viagem ao exterior. “Imaginei que você não conseguiria mais viajar”, lamentou.

Meu visto concedido pelo consulado de São Paulo em 5 de março fora cancelado, a exemplo do que ocorrera alguns dias antes com o do fotógrafo italiano que iria da Tailândia para Mumbai fazer a reportagem comigo.

Baseado em Londres há 30 anos e em viagem pela Ásia desde novembro, ele foi tragado pela espiral do coronavírus que faz estragos em seu país natal, o qual não visita desde meados do ano passado.

Ele foi forçado a desistir do trabalho como freelancer acertado com a Folha e permanece ilhado em Bancoc, sem conseguir visto para outros países asiáticos, a espera dos próximos acontecimentos.

“Você não deve ter problema pelo fato de o Brasil não estar na lista negra”, me escreveu ele, na terça-feira, referindo-se ao grupo de países que tiveram inicialmente o visto cancelado: China, Itália, Japão e Coreia do Sul.

E fez um resumo dramático das incertezas geradas pela crise sanitária em escala global: “Para mim, é muito difícil, eu não posso viajar para lugar nenhum. Peguei uma extensão do meu visto tailandês até 11 de abril, mas não posso renová-lo e o meu voo de volta para Londres é só em 4 de maio. É um pesadelo”.

O Brasil e o resto do mundo entrariam na lista negra das autoridades indianas poucas horas depois, quando a OMS decretou se tratar de uma pandemia.

Agora seria minha vez de mudar planos e avisar as organizações com quem iria manter contato de que não conseguiria chegar à Índia. Era preciso também cancelar as reservas de hotéis. O de Mumbai, com desistência gratuita, foi tranquilo, com apenas um clique.

Para o hotel reservado em Nova Déli, que não permitia mais cancelamento gratuito, fiz um email explicando a situação. Cinco horas depois, chegava a reposta de que nada seria cobrado e que o cancelamento também seria gratuito.

Era preciso ainda reprogramar os voos e antecipar minha passagem de volta para São Paulo. A relações-públicas da Emirates Airline em Dubai, uma indiana, entendeu minha demanda e foi prestimosa em pedir a alteração da minha volta junto com os outros três jornalistas do grupo.

Viajar em tempos de coronavírus é sinônimo de outros imprevistos como chegar ao hotel, após um dia intenso de atividades, subir para seu quarto e dar com a cara na porta na noite desta quinta-feira (12).

O primeiro pensamento é que o cartão provavelmente desmagnetizou. Na recepção, sou informada de que vou ser transferida para outra unidade do grupo, mais luxuosa. A justificativa: problemas de manutenção no quarto. Explico que estou viajando com um grupo e não seria o caso de ficarmos em hotéis diferentes.

É quando vejo dois colegas brasileiros também chegarem à recepção com o mesmo problema nos cartões eletrônicos. Lá estavam eles também para serem informados de que precisavam desocupar os quartos naquela noite ou logo pela manhã. Suspeitamos de que fosse uma evacuação pro razões sanitárias, mas o funcionário disse que não, sem dar mais informações.

Decidimos que o melhor era fazer a mudança à noite, mesmo cansados, pois no dia seguinte a programação começaria cedo. Entramos em contato com a jornalista brasileira que trabalha para a companhia aérea dos Emirados Árabes no Brasil e nos acompanha na viagem.

Ela estava se aprontando para dormir e também foi comunicada de que teria que deixar o hotel. Com baixa ocupação devido a cancelamentos de reservas e diminuição drásticas de turistas na cidade, a cadeia de hotel resolveu fechar a unidade em que estávamos hospedadas. Transferiu todos os hóspedes para outros estabelecimentos.

Saímos do “hotel-boutique” modernoso, com uma espetacular vista do golfo, para o primo rico ao lado, mais pomposo e em estilo clássico.

Um upgrade nada bem-vindo. Tudo o que queríamos era descansar no nosso confortável quarto, que ocuparíamos a principio durante toda a estada. Em vez de chuveiro e cama, fomos nós fazer refazer malas e fazer check-out e novo check-in, processo concluído por volta da meia-noite.

“Estou me sentindo na primeira-classe do Titanic”, brincou meu colega curitibana, sobre o inesperado upgrade de hotel.

A caminhada de 200 metros até a entrada do cinco estrelas suntuoso foi rápida, mas deu tempo de puxar papo com o carregador de malas nigeriano que nos contou que estava voltando de “férias” para a Nigéria. Por três meses, a princípio. Com o hotel onde trabalhou por cinco anos fechado, ficou sem emprego e sem salário.

Nos despedimos dele com tristeza, imaginando a legião de trabalhadores que será impactada pela pandemia.

Por enquanto, os impactos do avanço da Covid-19 no Brasil e no mundo eram mais virtuais, chegando a mim pelas incessantes e angustiadas mensagens nos grupos de mães da escola no WhatsApp e por notícias apocalípticas nos sites que dão conta da extensão do problema.

Nas ruas de Dubai, a ausência de chineses e japoneses entre os turistas é o que mais chama atenção. São poucos os transeuntes de máscaras na rua. No hotel, pela manhã, a camareira de origem asiática, usava a proteção.

No metrô, um ou outro passageiro circula usando máscara. A minha ainda não saiu da mochila. O álcool gel é o item de segurança mais usado.

No aeroporto de Guarulhos havia bem mais “mascarados” do que na chegada a Dubai, em um voo em que a exclusivíssima primeira classe do majestoso Airbus A380, o maior avião comercial do mundo, estava quase vazia. Assim como a concorrida classe executiva da aeronave com capacidade para 500 passageiros não chegava a um terço da ocupação. O destino badalado costuma ter taxas superiores a 80%, em tempos normais.

Retratos de um mundo em que viajar é sinônimo de perigo, e que voltar para casa significa certamente um período de quarentena. E lidar com a frustração de não ter chegado ao destino final.

Culpa de um vírus capaz de provocar caos em nações desenvolvidas, como a Itália, suspender voos entre a Europa e Estados Unidos, derrubar bolsas de valores mundo afora, cancelar grandes eventos.

No meu pequeno universo, meu longo dia acabaria com a dispensa do mordomo do hotel luxuoso que bate à minha porta por volta da meia-noite para me oferecer ajuda para desfazer as malas.

Terá sido sonho ou pesadelo provocado pelo fantasma da Covid-19? É só mais uma noite em Dubai. Já são 1h54 quando coloco o ponto final neste texto em primeira pessoa para ser publicado nesta sexta-feira (13).

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