Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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À espera do 'coronavoucher', tecnologia e mobilização são armas de líderes de favelas na pandemia

Eduardo Lyra, da Gerando Falcão; Gilson Rodrigues, do G10 das Favelas e de Paraisópolis; e Preto Zezé, da Cufa, estão na linha de frente contra o coronavírus em comunidades-símbolo da desigualdade

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“Não se pode vencer a Convid-19 e matar o pobre. Se a renda mínima não chegar em caráter de urgência para atender os brasileiros mais vulneráveis, vai ter uma hecatombe social nos próximos dias nas favelas.”

O alerta é de Eduardo Lyra, da ONG Gerando Falcões, uma das vozes mais expressivas entre as lideranças que emergiram de comunidades carentes brasileiras na última década.

À frente de uma rede de organizações que aposta na potência de favela e periferias para transformar comunidades carentes Brasil afora, Lyra cobra coragem e ousadia das autoridades brasileiras frente à pandemia.

“Os poderosos têm de pensar grande. A favela aguarda posicionamento efetivo. Se isso não for feito, todos os níveis de governo ficarão com dívida histórica para com os brasileiros mais pobres.”

Ele cita o memorável discurso inaugural de Winston Churchill como primeiro-ministro da Inglaterra, em maio de 1940, prenúncio dos tempos difíceis e dos enormes sacrifícios diante da 2a Guerra Mundial.

“Eu diria à Casa, como disse àqueles que se juntaram a este governo: nada tenho a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor.''

Só que o esforço de guerra, ressalta Lyra, chegava junto com um voucher para alimentar a população. “Vamos vencer a Covid-19, mas com comida para os mais pobres. Sem isso, perde-se a ordem social”, diz o fundador da Gerando Falcões.

O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta quarta-feira (1º) a proposta aprovada pelo Congresso que permite o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais. O valor poderá ser de R$ 1.200 para mães responsáveis pelo sustento da família.

Enquanto o socorro não chega em escala e como política pública, Lyra articulou um fundo de R$ 8 milhões, a partir de doações de empresários como Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Rubens Menin (MRV Engenharia) e David Feffer (Grupo Suzano).

A campanha “Corona no Paredão” vai permitir a distribuição de 27 mil cartões de vale-alimentação no Capão Redondo e Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo; na Rocinha e no Complexo do Alemão, no Rio; por exemplo.

“Entendemos que se fosse entregar cestas básicas, teríamos um gargalo logístico grande. Como queremos trabalhar em escala temos que suar tecnologia”, explica Lyra. Ele contou com apoio técnico de Accenture, Ticket e Alelo para viabilizar a operação em tempo recorde.

O mesmo pensamento estratégico tem Gilson Rodrigues, coordenado nacional do G10 das Favelas e presidente da União dos Moradores de Paraisópolis. “Diante da gravidade da situação, antes de sair fazendo a distribuição de mantimentos, era preciso nos organizar para ter como atender todas as famílias e ao mesmo tempo evitar o contágio”, explica.

Gilson Rodrigues, líder do G10 das Favelas e presidente da União dos Moradores de Paraisópolis Crédito: divulgação
Gilson Rodrigues, líder do G10 das Favelas e presidente da União dos Moradores de Paraisópolis - Divulgação

Após dois dias de reuniões, foi desenhada uma metodologia para atuação em rede, dividindo responsabilidades para um resultado efetivo.Para conseguir atingir toda a favela de Paraisópolis e seus 160 mil moradores, foram identificados voluntários dispostos a participar do processo de conscientização e mobilização da comunidade.

Cada grupo de 50 casas passou a estar sob a responsabilidade de um presidente e um vice-presidente de rua (para o caso de um deles vir a ficar doente durante a pandemia). Ao final, foram mapeados 840 voluntários para atende 21 mil domicílios. “Desenhamos uma operação de guerra literalmente”, diz Gilson.

Os soldados-voluntários receberam quatro missões. A primeira é garantir que o morador fique em casa, conscientizando a população para não se expor. A segunda, combater as fakes news que proliferam assim como o novo vírus.

Eles passam a ser responsáveis ainda por fazer a distribuição das doações para as famílias de suas respectivas ruas, de forma a não gerar aglomerações. A ideia é que sejam criados diversos centros de distribuição.

Ao presidente da rua cabe também acionar o socorro quando necessário. Cada um monitora suas 50 famílias por grupo de WhatsApp. Ao ser informado de que um morador apresenta sintomas da Covid-19, deve chamar uma das três ambulâncias que a associação de moradores contratou, equipadas com UTI, médico e enfermeira, disponíveis 24 horas.

O pré-atendimento é feito na própria ambulância e caso seja necessário o paciente é removido até a Ama de Paraisópolis ou o Hospital do Campo Limpo.“Estamos montando também um hospital de campanha, que vai abrigar mil pessoas em duas escolas estaduais”, explica Rodrigues. “Se o resultado do exame der positivo, o protocolo que estamos montando com a Secretaria Municipal de Saúde é levar a pessoa para esse espaço para não contaminar a família toda.”

Entre as mil frentes de combate ao coronavírus e suas consequências em Paraisópolis, o líder comunitário cita o programa Adote uma Diarista. “É o Linkedin da favela. Começamos aqui e outras comunidades já estão replicando."

Durante três meses, as 150 diaristas já adotadas vão receber R$ 300 por mês de seus padrinhos, mais um kit de cesta básica e produtos de higiene. O apadrinhamento é feito por meio de doação em um vaquinha digital voltada para pessoas físicas.

Outra iniciativa é manter a produção em casa das 20 costureiras do projeto Costurando Sonhos. “É o home office das costureiras de favelas. Estamos levando as máquinas de costura as para casas delas.”

Outra iniciativa para manter a economia local viva é atrair doações para os restaurante de Paraisópolis produzir marmitas para os moradores mais necessitados.Segundo Rodrigues, 2.000 marmitas são doadas e distribuídas por dia para as famílias mais vulneráveis. “Além de receber comida boa e aumentar a imunidade, é uma ação que faz girar a economia local.”

Medidas que ajudam, mas não resolvem. “O programa de Renda Mínima ainda parece distante. Ninguém sabe como vai ser. Muita gente acha que o cara já mandou dinheiro para mim”, diz o líder comunitário.
Na mesma trincheira está Preto Zezé, presidente da Cufa (Central Única das Favelas), presente em todos os estados brasileiros e em 17 países.

“Temos 5.000 favelas e 100 mil voluntários mobilizadas no Brasil. O coronavírus chegou antes nas comunidades na forma de desemprego, por causa do isolamento social. Chegou primeiro nos ricos, mas sacrifica os pobres.”

Zezé ressalta que o “isolamento de direitos” é de muito tempo para essa parcela da população brasileira. Ao mesmo tempo, ele lembra da importância do trabalho desse exército de trabalhadores em funções subalternas. “O cara do posto de gasolina, o caixa de supermercado, o gari que limpa a rua são todos da favela. É gente que dá possibilidade para que os demais possam fazer quarentena.”

O presidente da Cufa está mobilizando uma série de apoios para trabalhar numa agenda positiva nesses territórios mais vulneráveis do país. São 300 favelas cadastradas só no eixo Rio-São Paulo para receber donativos da campanha Cufa Contra o Coronavírus."

É preciso uma logística grande e um trabalho em rede para fazer chegar à ponta, por exemplo, as 10 toneladas de picanha doadas pela grupo JBS", exemplifica Zezé.

Nesta quinta-feira (2), a Cufa vai lançar o programa “Mãe da Favela", em parceria com o Instituto Unibanco, uma bolsa de R$ 120 mensais para 10 mil mães solteiras. Por meio da plataforma PicPay.

“As mulheres vão baixar o aplicativo pelo celular, receber o crédito e comprar o que precisam no comércio local.” De uma tacada só, aquece a economia dos microempreendedores locais e põe dinheiro na mão das mulheres, o grupo mais frágil na pandemia, depois dos idosos, ressalta o presidente da Cufa. Sem aglomeração e sem burocracia, por meio de moradores já cadastrados pelas entidades ligadas à central nas comunidades.

Segundo Zezé, o PIB das favelas é estimado em R$ 119 bilhões, “maior do que o do PIB de Bolívia e Paraguai juntos, e está quebrado”.

Os impactos da Covid-19 afetam toda a economia. Nas favelas e perifeias há um outro imediato, para uma população em sua maioria de autônomos, que vivem na informalidade e sem reserva no banco para emergências.

“A fome das pessoas é agora”, afirma Zezé. Surpreso positivamente com o grau de solidariedade neste momento, ele conclui: “Nosso Brasil foi apresentado ao outro.”​

Eliane Trindade
Eliane Trindade

Editora do Prêmio Empreendedor Social, parceria da Folha com a Fundação Schwab, e titular da coluna Rede Social

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