Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

Após prisão, ex-jogador vira craque no social: crime e recomeço

Leonardo Precioso fundou ONG para apoiar egressos, depois de se desiludir com futebol e entrar para o tráfico e organização criminosa

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Eles entraram em campo juntos na adolescência, quando ambos frequentavam um projeto social nos extremos da zona leste de São Paulo. Um era craque e o outro, perna de pau.

Leonardo Precioso, 38, virou jogador profissional, com passagem promissora pelo São Caetano, no time que fez história no Azulão com o vice-campeonato da Copa João Havelange em 2000.

Depois de passar por uma série de time de menor expressão e desiludido com o futebol, o ex-jogador entrou para a criminalidade e acabou na prisão.

Condenado a 8 anos de prisão por sequestro em 2008, era membro de uma facção quando foi resgatado do mundo do crime por uma jogada de mestre do colega ruim de bola.

Eduardo Lyra, 32, já era um craque no campo social à frente do Instituto Gerando Falcões.

Parece fábula, mas é a crônica da amizade de dois jovens nascidos e criados na periferia de São Paulo em meio à violência e criminalidade.

"Estava na faculdade, quando fiquei sabendo que Leo tinha desistido do futebol, virado traficante e entrado no PCC", recorda-se Edu. Na época, ele começava a voar alto em seu projeto de transformar a garotada da favela em falcões.

Inicialmente, foi epistolar a catequese para fazer o amigo de infância e de peladas por campos de várzea no bairro Cidade Kemel, sede do projeto social onde jogaram bola juntos.

“Fiz uma promessa e comecei a negociar por meio de cartas a saída dele do crime”, relata Edu, que também viveu a dor de ser filho de um presidiário.

A primeira carta foi enviada em 2010 para a penitenciária de Parelheiros. “Era uma por mês”, recorda-se Leonardo, que guarda como troféu a correspondência trocada ao longo de quatro anos.

“Ele escrevia que eu era um bom companheiro, bom amigo, bom profissional. Resgatou valores adormecidos dentro de mim.”

Uma pergunta sempre ficava sem resposta: “O que ia fazer pós-liberdade?”. Envolvido com o crime organizado dentro do sistema carcerário, Leonardo desconversava ao escrever de volta para Edu. “Ainda não é hora de falar disso.”

Até que numa saída temporária, foi levado pelo fundador do Instituto Gerando Falcões para ver o que ele estava criando como alternativa ao crime na comunidade em que Leonardo fora líder do tráfico.

Xeque-mate. Três dias depois de sair da prisão, após cumprir sete anos e 13 dias em regime fechado, o ex-presidiário foi convidado por Edu para um jantar.

No cardápio, um desafio: “Ele me propôs abandonar tudo o que o crime podia oferecer para ir trabalhar na Gerando Falcões.”

O salário era de R$ 1.350. “Mais a dignidade restaurada através de um trabalho de esportes com jovens.”

Do outro lado da balança, o negócio de drogas e armas, que podia gerar R$ 120 mil por mês. “Mais o preço alto da perda da liberdade e até da própria vida.”

Casado e pai de uma menina, a escolha foi também por Sofia, 9. “Abri mão do que eu tinha como possibilidades no mundo do crime e fui enfrentar o mercado de trabalho e o a vida numa organização social.”

Resgatou o que ficou de bom do passado de jogador profissional, quando passou pelo time do ABC Paulista que fez história ao atropelar grandes clubes da primeira divisão na Copa João Havelange em 2000, nome dado ao Brasileirão daquele ano.

“Já no júniores, eu fui promovido pelo técnico Jair Picerni para trabalhar com a equipe principal que, na época, tinha um plantel de grandes jogadores como Túlio maravilha”, recorda-se Leonardo.

O grande momento do Azulão foi também o ponto áureo da carreira do garoto da zona leste que, jogando de lateral e volante, apostava todas as fichas em campo. Em 2001, após fracasso em outros torneios, grande parte do elenco que não foi vendido para grande times foi dispensado.

Leonardo começaria a enterrar o sonho iniciado aos 7 anos, quando passou por uma peneira no Corinthians, onde ficou até os 12 anos.

Na adolescência, quicou em equipe de base de Palmeiras, Juventus e no exterior. Jogou no Chile dos 15 aos 16 anos.

Como profissional, rodou por vários clubes pequenos Brasil afora, ainda correndo atrás da redenção pelo futebol para si e para a família.

O pai era motorista e a mãe, merendeira. O salário de jogador estava distante dos valores milionários das estrelas do esporte. “Ganhava uns R$ 4 mil por mês, o que supria apenas as minhas necessidades.”

Jogou até os 24 anos, quando desistiu da carreira após mais uma decepção. “Estava em um clube em Santa Catarina, com salário atrasado, sem auxílio-moradia.”

De volta ao Itaim Paulista, reencontrou amigos também frustrados com a música e o esporte, as duas únicas possibilidades de ascensão social que enxergava na favela.

“Muitos já estava vivendo na criminalidade, em receptação, tráfico de drogas. Comigo não foi diferente. Acabei me envolvendo.”

Três anos depois, seria preso. “Com o crime eu tive carro, casa, dinheiro. Era ilusório.”

A conta chegou no cárcere. “Era escassez de tudo, de alimentação e todos os direitos sociais negados.” Nunca havia se imaginado dividindo uma cela 70 pessoas, em um lugar feito para 12 presos. “Olhei para aquela realidade e tive que entender como ia sobreviver ali.”

Desenvolveu uma capacidade de adaptação e resiliência que servem hoje como exemplo para outros ex-presidiários que atende na ONG Recomeçar, nascida dentro do Gerando Falcões.

“Leo se destacou, foi crescendo e nós também. Disse pra ele: ‘Você tem de voar, brother’”, explica Edu. O projeto interno liderado pelo amigo, voltado à ressocialização de presidiários, virou uma organização independente no final do ano passado, com maior capacidade de captação, penetração e escala.

“Meu objetivo é produzir líderes em favelas, talentos que vão oferecer soluções para grandes problemas de periferia”, ressalta o fundador do Gerando Falcões, sobre o amigo que virou empreendedor social.

A ONG Recomeçar é uma das 20 aceleradas pelo instituto que atua com uma rede de organizações menores. Recebe dinheiro e apoio na gestão para se consolidar. O voo de Leo como ongueiro já recolocou 150 egressos do sistema prisional no mercado de trabalho.

Ele conta com parceria de empresas que abrem vagas para ex-presidiários encaminhados pela ONG, após passarem por programas de qualificação profissional e empregabilidade.

Com a pandemia, aumentou a procura por apoio, com média de 40 novos cadastrados por dia. “O maior desafio é arrecadar mais doações para suprir necessidade desse público, que é bastante vulnerável e está à margem”, diz Leonardo.

Enquanto o emprego não vem em tempos de crise e isolamento social, o público da Recomeçar é um dos beneficiados pela campanha Corona no Paredão, do Gerando Falcões. Foram distribuídos 1.070 cartões para egressos e familiares comprarem cestas básicas durante a quarentena.

“Tenho uma organização social e transformo outras vidas. Sou referência de sucesso”, afirma Leonardo. Uma trajetória que vai virar livro, intitulado “Sobrevivente”, em fase de finalização.

“Tudo que sonhei em fazer como referência no esporte, hoje faço na área social, ao engajar e mobilizar pessoas para essa causa e transformar as vidas daqueles que querem sair do crime.”​

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