Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu Coronavírus

Como é ser hóspede em hotel de luxo esvaziado pela pandemia

A quarentena cinco estrelas de viajantes que não podem voltar para casa ou de clientes que moram em ícones da hotelaria

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São Paulo

Em momentos sombrios naquela que poderia ser uma quarentena cinco estrelas, a visão do corredor vazio do 14º andar do Meliã Brasil 21 Convention remete ao filme "O Iluminado" (1980), de Stanley Kubrick.

É a sensação descrita por José Luiz Nogueira, 60, único hóspede do andar, entre os quatro clientes remanescentes no hotel de cerca de 200 apartamentos no central Setor Hoteleiro Sul de Brasília.

"É surreal os corredores e elevadores sempre vazios", diz o ocupante do apartamento 1407, onde está alojado desde 16 de março, quando desembarcou na capital da República para compromissos de trabalho, vindo de Portugal, onde reside a família.

Em três semanas de confinamento, a viagem possível é pela imaginação recheada de referências de filmes, livros, paisagens.

Nogueira já se viu até em cenas de um clássico que também se passa em um hotel fantasma. No caso do longa de terror psicológico produzido e dirigido por Kubrick e estrelado por Jack Nicholson, é o isolado Overlook Hotel, no Colorado.

"Só faltam aparecer as gêmeas no corredor e alguém sair gritando: Wendy!", brinca. Os assombros sobrenaturais da ficção foram substituídos pelos fantasmas trazidos pelo novo vírus a assustar a todos.

Longe de casa e sem perspectivas de cruzar o Atlântico tão cedo diante do fechamento das fronteiras europeias, Nogueira se viu forçado a cumprir distanciamento social na capital da República, onde tem uma produtora e mantém vínculos profissionais.

"A vida virou um filme de ficção científica", diz o publicitário, ao seguir à risca a quarentena pós-viagem internacional.

Ora ele se vê como astronauta, como ao se paramentar para as raras incursões fora do hotel, ora como prisioneiro ou náufrago.

As horas sem fim do confinamento viraram crônica: "Vida de Astronauta".

Ele escreve: "Fiz quatro continentes, em pouco mais de 30 dias. Corri tanto para chegar aqui, que consegui pegar o último voo de Marrakech para Lisboa, antes que as fronteiras da Europa se fechassem... Mas, eu não sabia, o vírus corria mais rápido.Ele já havia me encurralado no Marrocos, onde, realmente, entendi a gravidade e a escala global da pandemia".

Confinado em um quarto de hotel, Nogueira acompanha pelo noticiário o planeta em estado de urgência, o trabalho heroico dos profissionais de saúde mundo afora e a mobilização da guerra contra o coronavírus. "A luta contra um inimigo invisível, minúsculo, microscópico, mas muito poderoso."

O fantasma do novo vírus lhe impõe uma rotina dentro de uma confortável suíte, com vista para a Esplanada dos Ministérios, mas sempre impessoal e padronizada.

"De manhã, vou à varanda estreita do quarto, buscar o sol. Uma nesga de luz solar se abre por cerca de 50 minutos. É o melhor momento do dia", descreve Nogueira, sobre os banhos de sol diários, entre 10h e 11h. "O quarto permanece nas sombras; a TV, muda, desligada. O Kindle, o computador, a garrafa de água, sobre a mesa. Já nem sei se quero saber das notícias."

No protocolo sanitário seguido pela rede espanhola de hoteis, os hóspedes fazem as três refeições no quarto. Os dois restaurantes da estrutura espalhada por três prédios estão fechados, assim como a piscina e a sala de ginástica. A academia de 1.000 m² é anunciada como a maior entre os hotéis nacionais.

O hóspede do 1407 inventou até um calendário próprio. Em vez do solar, segue o "salar", desde que passou a contar os dias de reclusão com pacotinhos de sal que o "room service" deposita em sua bandeja de comida.

No cardápio reduzido do café da manhã já não tem ovos. O menu oferece quatro opções de pratos para almoço e jantar. "Não sei quantas vezes comi frango grelhado com legumes e purê de batata", relata. "Mas é como se fosse a última ceia, me alimento com respeito e gratidão. Não podemos esquecer que tem gente que não tem o que comer."

É preciso manter o corpo e a mente sãos. O publicitário engole vitaminas, faz flexões e alongamentos, seguindo uma disciplina recomendada por viajantes em órbita e por prisioneiros em suas celas. Tenta não perder o senso das horas nem trocar noite pelo dia.

Grato pela refeição de hospital, às vezes se presenteia com um delivery do restaurante preferido. Nutre-se ainda da leitura —de poesia, jornais— e da grande corrente formada no WhatsApp.

"O afeto é mais intenso quando se pode tocar, mas nesse momento a mediação da tecnologia ajuda." Conversa por aplicativos com filhos e netos. "O Atlântico nunca me pareceu tão intransponível."

Enquanto isso, segue em órbita numa rotina em que tempo e espaço são grandezas físicas cada vez mais difusas, como se todos os dias fossem domingo.

"Uma imensa espera, coletiva, me prende aqui. Os poucos sons que a janela traz são os de automóveis com pressa, acelerados, mas que logo se perdem no horizonte. O meu relógio, tão moderno, se tornou inútil. Sua pulseira preta, os comandos digitais, e até mesmo o tempo, que ele, ainda, insiste em marcar", escreveu em um post no Facebook, intitulado Diário de Bordo, sobre a experiência de hóspede em uma prisão fantasmagórica e burguesa.

Nogueira agradece a gentileza dos poucos funcionários prestimosos e da única camareira em serviço para atender quatro hóspedes. "Com o avanço da pandemia, o hotel pode virar um hospital ou abrigo para pessoas em vulnerabilidade social", diz o publicitário, ao saber que o presidente de uma outra grande rede hoteleira colocara a disposição a estrutura esvaziada pelo colapso do setor turístico no mundo.

"Aí, saio do filme do Kubrick e embarco em ‘On the Road’ em Goiás", diz Nogueira, especulando, quem sabe, uma eventual transferência para um sítio na Chapada dos Veadeiros. Pela estada prolongada, ele paga diárias de R$ 259, com desconto. "Mas começo a achar que estou sobrando por aqui."

O Meliã não quis se manifestar. Na Espanha, onde o surto já mostra sua face mais crítica, hotéis da rede têm abrigado médicos a serviço da emergência sanitária, o que remete à Gripe Espanhola e à Peste Negra no passado.

A baixa ocupação em razão da suspensão de voos e viagens, turísticas e de negócios, levou ao fechamento de hotéis de todas as categorias e bandeiras mundo afora.

O icônico Copacabana Palace funciona para atender dois hóspedes-residentes e casos excepcionais.

Procurada pela Folha, uma das residentes não quis dar entrevista. A assessoria do hotel também prefere não se manifestar sobre os arranjos feitos para atendê-los em meio à pandemia. "O Belmondo Copacabana Palace segue em funcionamento nesse momento", foi a lacônica resposta da assessoria de imprensa.

Outro ícone da hotelaria de luxo, o Emiliano, fechou a unidade carioca, mas deixou entreaberta as portas em São Paulo para atender clientes habituais que costumam passar longas temporadas no hotel.

Segundo o serviço de relações públicas, é seguido um protocolo rígido de segurança e higiene. O Emiliano contratou a consultoria de um infectologista para definir os procedimentos e evitar contágio. Quando um hóspede sai do quarto, é respeitado um intervalo de 48 horas para a limpeza. A interação dos poucos funcionários com os hóspedes foi reduzida ao essencial e com equipamentos de proteção.

O restaurante está aberto apenas para a clientela reduzida que, mesmo hospedada, não pode usufruir do spa e da academia, devidamente fechados. O cardápio e os talheres são limpos a cada 30 minutos.

A ideia é proteger hóspedes e funcionários para continuar a ser uma extensão da casa dos hóspedes e oferecer uma experiência diferenciada, honrando um serviço que justifica diárias a partir de R$ 1.500.

Como viajar na imaginação não custa nada, Nogueira recomenda para dias de isolamento social, medida extrema para conter a proliferação do novo vírus enquanto não existe cura nem vacina, a leitura de "O Andarilho das Estrelas", de Jack London.

A versão impressa da romance do escritor norte-americano custa R$ 49,90 ou R$ 5,99, no Kindle. "Troque apenas o cenário, a condenação pela pandemia, a sua casa pelo presídio, e aprenda, finalmente, a viajar, sem sair do lugar."

Eliane Trindade
Eliane Trindade

Editora do Prêmio Empreendedor Social, parceria da Folha com a Fundação Schwab, e titular da coluna Rede Social

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