Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

2020: O ano que já terminou

Entre lutos e 'lives', a volta ao mundo em 80 dias sem sair de casa, refém do coronavírus e sem respirar diante da epidemia de violência e desigualdade

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Um luto sem fim. A morte com aviso e sem despedidas. Em números crescentes e aos milhares, numa escalada que nos faz perder a real dimensão da tragédia de um mundo em pandemia.

São velhos e jovens derrotados por um vírus insidioso. Vítimas que não deram "um último suspiro" de alívio. A metáfora de uma despedida serena foi substituída pelo aflitivo não conseguir respirar. Uma lenta agonia.

"Eu não consigo respirar" ganha ainda uma conotação assassina com a imagem da bota do policial que esmaga a face negra no asfalto.


Falta-nos ar a todos. Com ou sem sintomas do coronavírus, que traga pulmões e vidas em escala planetária.

E nós, brasileiros, ainda temos a epidemia nacional de mortes violentas. A truculência não entrou em quarentena e mata o adolescente negro que não está protegido nem ao brincar dentro de casa.

Na avalanche de mortes, a da criança pobre que despenca na negligência da patroa é mais que notícia triste. É crônica de uma elite desconectada da realidade e que não abre mão de seus luxos e privilégios.

No momento em que pandemia já ceifa a vida de um brasileiro a cada minuto, a madame faz a unha e lava as mãos para o filho da doméstica que não tem direito a quarentena, medida de proteção que virou também privilégio.

Nesse cemitério de esperanças, há um sem-número de coveiros: do governante destrambelhado à digital influencer que nega a ciência e o racismo. Gente que age como se fosse imune ao vírus e ao sofrimento de uma legião de desassistidos.

O que nos salva? A solidariedade, em doses nunca antes vistas nesse país. E também os afetos. As amizades. O melhor lugar do mundo. Para onde correr quando os aeroportos estão fechados. Vale brinde pelo zoom e afagos virtuais. As flores que chegam sem aviso e perfumam a casa, a vida.

Amigo é meu melhor antídoto contra uma melancolia que rima bem com pandemia. Se não cura angústia, acalenta a alma.

Milan Kundera, em "A Identidade", seu último livro, escreve que as amizades são indispensáveis para o perfeito funcionamento da memória como testemunhas do passado, nas lembranças compartilhadas: de viagens a vexames, de roupa a ombro emprestado. De riso e lágrima. De barraco a calmaria. No glamour e na lama. Até que a morte ou a pandemia nos separe.

Amigos são espelhos nos quais nos enxergamos, signatários de um pacto informal contra a adversidade. Hashtag #tamojunto. A certeza da fidelidade testada pelo tempo e pelas intempéries. Na palavra que aquece, no riso que acalma, na mão que acaricia.

Como é capenga e sem cor um mundo sem toques, sem beijos, sem conversa jogada fora na mesa de bar. Sem horas perdidas no trânsito também. Dizem que é o novo normal.

Em isolamento ninguém é normal. O home office vira o "hell office", numa sucessão infindável de afazeres que se se atropelam. Dias e noites pontuados por um amontoado de "lives", protagonizadas por mortos-vivos que tentam passar normalidade.

É entretenimento ao alcance da mão para zumbis adictos de redes sociais. Egos que se retroalimentam de "likes".

Quem assiste tanta "live"? Quem lê tanta notícia? Como o poeta, sem lenço e sem documento, da sala para o quarto, da cozinha para o escritório, do banheiro para a varanda.

E assim se passaram 80 dias, circum-navegando por esse novo mundo comandado por um vírus que usa coroa e nos fez refém de uma tal Covid-19. No ano da graça ou da desgraça de 2020. O ano que já terminou.

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