Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Aritana, o cacique que virou novela e cupido de Riccelli e Bruna Lombardi

Os atores que se apaixonaram no Alto Xingu durante as gravações da telenovela de sucesso da Rede Tupi lamentam a morte do líder Yawalapiti por Covid-19

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Aritana é sinônimo de índio para uma geração que acompanhou a novela homônima da TV Tupi, lançada em 1978 com enorme sucesso.

Estrelada por Carlos Alberto Riccelli, no papel título, a trama foi inspirada no cacique Yawalapiti, 71, um dos principais líderes indígenas do Alto Xingu, morto nesta quarta-feira (5) vítima de Covid-19.

“A morte de Aritana é uma grande perda, ainda maior por não ser um caso solitário. Estamos perdendo grandes lideranças indígenas, parte da nossa história. Somos nós brancos os responsáveis por essa pandemia. Temos obrigação de proteger os índios que estão lá no mato cuidando da natureza por nós”, afirma o ator.

O primeiro contato de Riccelli com Aritana foi na casa dos irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas, em São Paulo. Os sertanistas foram uma espécie de consultores da telenovela que colocou a questão indígena no horário nobre da tevê.

“Aritana vinha passar dias com os Villas-Bôas, como parte da formação dele como cacique. Além das história dos antepassados, ele também conhecia a civilização branca e levava muito a sério a responsabilidade de liderar o seu povo”, recorda-se Riccelli.

Uma troca preciosa para a composição da personagem. “Aritana era muito íntegro, um ser humano na plenitude. Foi isso que procurei assimilar, como uma esponja, ao ficar perto dele.”

Um mês antes do início das gravações em estúdio em São Paulo, todo o elenco de “Aritana”, escrita por Ivani Ribeiro, viajou para uma imersão no Xingu.

Foi lá que Riccelli conheceu Bruna Lombardi. Os atores viveram uma história de amor, na qual ficção e realidade se misturaram, e que perdura até hoje.

“Conhecemos o verdadeiro Aritana, um líder de alma nobre, um príncipe no seu comportamento”, afirma a atriz. “Ele estava para se tornar cacique, mas já se via uma nobreza imediata, uma elegância natural de uma pessoa linda. Era muito comedido, inteligente.”

Ao saber da morte do cacique, Bruna fez um post em homenagem a Aritana no Instagram, postando imagens da época.

Uma delas é a foto dos dois Aritanas, o de verdade e o da ficção, com o mesmo corte de cabelo em cuia, sentados diante de uma oca.

A novela foi um marco na carreira de ambos. “Até hoje, nos lugares mais impensáveis, ainda falam de ‘Aritana’. Nunca fiz novela, nem na Globo, que durasse tanto na memória das pessoas”, afirma Bruna.

A atriz considera um privilégio ter convivido com o cacique que deu nome à trama. “A gente ia nadar e pescar com Aritana. Aprendemos muito com ele e com os pajés, vendo como lidavam com as plantas e com a natureza”, recorda-se.

Riccelli aprendeu as danças e participou de rituais com o próprio Aritana. O contato com a tribo e os seus costumes foi facilitado pela intermediação dos Villas-Bôas.

“Confiavam neles. Na aldeia sempre contamos com a maior boa vontade", relata Riccelli. "Como eu tinha o corpo e a estatura parecida com a deles, os índios me pintavam com urucum e jenipapo e diziam que estava igual a eles.”

O ator de origem italiana diz que só aceitou fazer o papel por se tratar de um mestiço. “Encarei como um serviço mostrar, mesmo de forma romantizado e folhetinesca, a cultura indígena para o público em geral.”

Riccelli lamenta que a vida e o trabalho tenham levado a um distanciamento daquele universo. Nem ele nem Bruna voltaram ao Xingu depois de “Aritana” e não tiveram mais contato com o cacique que ganhou projeção nacional e internacional pelo sua luta pela criação do Parque Nacional do Xingu e em defesa dos povos indígenas.

Os atores Carlos Alberto Ricelli e Bruna Lombardi durante gravação da novela "Aritana" (1978), da TV Tupi - Rede Tupi de Televisão/Divulgação

O casal se indigna com a falta de proteção aos povos da floresta, um dos mais vulneráveis frente a pandemia do novo coronavírus.

Durante a pandemia, os atores se engajaram em campanhas de apoio aos povos do Xingu. “Não era para chegar Covid-19 a um lugar tão remoto. Fico pensando se não é intencional dizimar povos tão vulneráveis”, afirma Bruna.

“Todo mundo sabe que a crise é grande e estamos perdendo pessoas maravilhosas”, emenda Riccelli.

As circunstâncias da morte do cacique, que precisou ser transportado de carro por dez horas para ter acesso a tratamento, também choca. “A situação é precária e desesperadora. É crise de lesa-humanidade permitir que a origem do nosso país seja tratada dessa maneira”, critica a atriz.

Após a entrevista, a também poeta e escritora encaminhou o texto a seguir sobre o “encontro que mudou a sua vida”.

A atriz Bruna Lombardi nas gravações da novela Aritana (1978)
A atriz Bruna Lombardi nas gravações da novela Aritana (1978) - Arquivo pessoal

“Desci de um pequeno avião numa pista improvisada no coração da floresta, perto do Posto Leonardo. Os irmãos Villa- Bôas tinham conseguido a demarcação das terras indígenas e era quase impossível visitar o Xingu.

A razão de eu aceitar esse trabalho foi justamente viver essa aventura, mas eu não podia imaginar que isso mudaria minha vida pra sempre.

Eu era a única mulher de uma pequena equipe e conheci o ator que faria o papel de “Aritana”, com quem eu ia passar um mês na aldeia Yawalapiti, no Alto Xingu.

Era uma época ainda de muito pouco contato com os brancos e eu ia poder vivenciar o cotidiano nas ocas e a cultura da tribo.

Conhecemos o verdadeiro cacique Aritana, um líder de alma nobre, um príncipe no seu comportamento. Eles falavam o Aruak e também entendiam muitas frases nossas. Tinha uma forte curiosidade de troca dos dois lados.

Era impressionante a organização serena da aldeia, a calma do tempo e a maneira como convivem com a natureza. Íamos nadar diariamente no rio Tuatuari e na lagoa Ipavu, lugares de beleza indescritível, águas supercristalinas que eles bebem e nunca sujam.

Tudo é muito limpo, assim como o interior da oca e o manuseio da comida. Eles plantam principalmente mandioca e pescam o necessário para o consumo. E a gente de canoa ia pescar com eles.

Eu ficava fascinada com a arte, o artesanato criativo colorido. Todos se enfeitavam numa linda mistura de cores. E a gente dançava junto com eles.

Eles fizeram para nós todos os rituais, festas, lutas e cerimônias pra filmagem e o Ri, vestido de índio, participou de tudo. Você vê as cenas e quase não o reconhece.

Brincamos muito com as crianças livres, carinhosas e sempre felizes. Elas diziam "vamo banhar?" e iam correndo com a gente pra mergulhar.

Os índios são pessoas fortes, generosas e extraordinariamente verdadeiras. Participamos de cerimonias com o xamã com sua absoluta sabedoria de todas as ervas e plantas da floresta. O xamã prepara as substâncias para tudo o que eles precisam. E faz as sessões de cura. Os rituais têm um espírito religioso e muitos cantos e danças.

Conhecer o Ri nesse paraíso terrestre foi um estado de total encantamento, com ele e com tudo o que me cercava. Fomos nos apaixonando na exuberante beleza e magia desse lugar. Não parecia real. Todos os dias a gente andava no meio de milhares de borboletas amarelas e azuis, numa absoluta comunhão com a natureza.

E nas noites adormecia olhando o céu do Xingu, que não encontro palavras pra descrever aquela imensidão silenciosa coberta de estrelas. Momentos de uma emoção tão profunda. Nunca pensei que uma história de amor pudesse acontecer assim. E nem estava esperando nada disso.

Conviver com povos indígenas foi uma experiência transformadora. Uma vivência que marcou a nossa vida e trouxe à tona nosso lado índio, livre, da terra, da natureza. E foi olhando aquele horizonte que não tinha fim que descobri como podia ser infinita a dimensão do amor.

Penso no Xingu, nos povos indígenas e na nossa história e sinto profundo respeito, admiração e uma gratidão imensa.” ​

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