Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

A arte de tricotar e vender que fez o sucesso de uma Maria de Lourdes na moda

A trajetória da fundadora da Malharia Anselmi, da Serra Gaúcha a shopping de luxo em SP; negócio milionário cresceu e contratou na pandemia

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Nascida e criada fora do circuito fashion, Maria de Lourdes Anselmi, 62, construiu uma trajetória de sucesso no mercado da moda nacional.

Enquanto grifes e estilistas badalados fecham portas e reestruturam seus negócios, a fundadora da Malharia Anselmi abria sua primeira loja em São Paulo no shopping JK Iguatemi, um dos mais exclusivos e luxuosos do país.

O lance ousado em junho de 2019 chamou a atenção para o grupo têxtil de Farroupilha (RS), na Serra Gaúcha, que já foi conhecida como Capital Nacional da Malha.

No município de 72 mil habitantes, Maria de Lourdes construiu do zero um grupo empresarial milionário.

“Nasci com esse dom e fui construindo meu negócio com os valores passados pelos meus pais, de trabalhar, fazer o correto e ajudar os outros”, afirma a dona de um negócio que produz 50 mil peças de tricô por mês em uma moderna tecelagem espalhada por 14.000 m2.

Conquistas inimagináveis para a dona de casa que começou a costurar num quartinho da casa para ajudar o marido caminhoneiro a complementar a renda.

“A gente era muito pobre. Com 12 anos parei de estudar para cuidar dos meus cinco irmãos na colônia”, relata a neta de imigrantes italianos do Vêneto e da Lombardia que só aprendeu português quando foi para a escola aos 7 anos.

Até então falava o dialeto dos avós, em um rincão de 24 hectares que a família ganhou ao chegar ao país em 1878. “Além do serviço doméstico, eu tirava leite, fazia queijo”, conta ela.

E fazia arte. Sem dinheiro para comprar linha, a menina engenhosa desmanchava peças do enxoval da mãe e sacos de sal e açúcar para usar os fios para tecer roupas.

Virou moça prendada, com curso de corte e costura. Casou-se aos 16 e a três dias do 17o aniversário se tornaria mãe.

Três anos depois, e após um século exato da chegada dos antepassados, Maria de Lourdes deixava a colônia rumo à cidade.

Começa ali a trajetória de empreendedora. Com dois filhos pequenos e sem ter como trabalhar fora de casa, Maria de Lourdes bateu às portas das malharias de Farroupilha para pedir serviço.

Costurando e bordando por encomenda, ela conseguiu economizar o equivalente a R$ 1 mil, capital inicial do futuro negócio.

Investiu o montante em tecido para fazer a primeira leva de 20 camisas. “Peguei uma sacolinha e fui para o centro vender, mas não vendi nenhuma.”

Até encontrar por acaso uma senhora que era revendedora em Porto Alegre. Viu ali a oportunidade de colocar o produto no mercado e pagou o táxi para levar a compradora até sua casa distante do centro.

Realizou a primeira venda. Sem telefone residencial, o segundo pedido veio por carta depois de uma semana.

“Nunca imaginei que o negócio fosse tomar essa proporção ”, diz Maria de Lourdes.

O primeiro ganho de escala veio com o uso de maquinário de uma vizinha, a quem pedia para preparar o fio para que pudesse confeccionar 900 peças por mês.

A parte mais difícil era transportar a matéria-prima comprada na vizinha Caxias do Sul. Andava uns 5 km com 15 kg de fios nos braços. “Com o dinheiro que economizava no táxi eu comprava um quilo de linha e produzia mais peças a cada viagem.”

Contabiliza também hematomas na cintura após carregar a carga sozinha. Sacrifícios recompensados com progresso, a ponto de o marido decidir vender o caminhão e investir no negócio da mulher.

A família já havia se mudado para uma casa melhor, onde a pequena fábrica foi instalada no porão. Uma cartolina com o sobrenome Anselmi escrito a mão por Sandra, a primogênita, deu nome à malharia registrada em 1982.

Maria de Lourdes também voltou a estudar, fazendo supletivo à noite. Aos 45 anos, entrou na faculdade em um curso de gestão empresarial.

O horizonte se expandia na mesma toada. Em uma reunião do comitê de estilo do sindicato da fiação, abriu-se a oportunidade de viajar ao exterior.

“Queria entender mais de moda. Há 30 anos, o mundo se abria para mim, quando passei a ir para feiras na Alemanha, na Itália, em Nova York”.

Levava junto a filha mais velha, a administradora Sandra, 45, que virou estilista e diretora de criação da marca há 28 anos. “Minha mãe tem uma cabeça muito aberta, quer sempre aprender e passou isso para os filhos.”

Da mesma forma, o filho do meio, Eduardo, 42, tornou-se o diretor administrativo e industrial do grupo, incentivado pela mãe, já divorciada, a ir para fora em busca das tecnologias avançadas em tecelagem.

“Fui fazer o primeiro curso com um fabricante em Milão e descobri que não sabia falar o italiano gramatical”, relata ele, sobre a língua aprendida com as avós.

Fez visitas técnicas também ao Japão e na Alemanha, trazendo na bagagem novidades para a fábrica.

“Na volta, eu treinava as equipes, programava as máquinas e dava suporte”, explica o herdeiro que não conseguiu fazer engenharia têxtil, mas se tornou especialista na produção em 3D, sem cortes.

A paixão pelo tricô une a família, incluindo a caçula Patrícia Anselmi, 28, diretora de marketing do grupo.

Seguem o exemplo materno e dizem não haver conflito de geração. “Nossa mãe é muito jovem e nós também começamos cedo. Conhecemos bem a indústria e somos apaixonados pelo que fazemos”, diz Sandra, sobre o sucesso da gestão familiar.

"Fiquei impressionada com a solidez do negócio e a qualidade na produção de uma roupa atemporal, o que não é tradição no Brasil", afirma a jornalista Lilian Pacce, referência setor, ao descobri a Anselmi, quando a marca de 40 anos chegou a São Paulo.

O caso de Maria de Lourdes Anselmi, segundo ela, é exemplar, de como a moda garante liberdade financeira às mulheres. "É a salvação de muitas famílias", diz a fundadora do movimento #eu apoioamodanacional, para dar suporte ao setor altamente impactado pela crise do novo coronavírus.

À frente de uma das tecelagens mais modernas do país, Maria de Lourdes e filhos passaram pelo duro teste da pandemia.

A quarentena forçou o fechamento da fábrica de meados de março a abril, período em que a Anselmi desligou 38 funcionários temporários e deu férias coletivas para os outros 400.

“O que essas pessoas vão fazer?”, angustiava-se Maria de Lourdes, diante das dispensas. O filho a acalmou: “Nada nos impede de pegá-los de volta, quando a fábrica reabrir.”

E assim foi feito. Recontrataram todos. “E ainda tivemos que puxar horas extras para dar conta da demanda. Zeramos nosso estoque e até faltaram produtos”, afirma Eduardo, sobre recordes de vendas no atacado e no varejo online durante a pandemia.

“Nossa previsão de crescimento é de 8% neste ano. Já passamos de 3% no primeiro semestre, recuperamos o prejuízo dos meses parados e devemos bater a meta.”

Segundo Eduardo, dois fatores explicam o aquecimento do mercado interno no setor: o dólar alto e o fato de os consumidores brasileiros não terem viajado para o exterior nesse período de fronteiras fechadas.

Perspectivas que levaram à decisão de investir R$ 10 milhões na expansão do parque fabril da Anselmi para uma nova planta nos arredores de Farroupilha.

A matriarca deu o tom na crise da Covid-19. “Garantimos desde o início que a empresa não ia medir esforços para segurar todo mundo”, recorda-se Maria de Lourdes.

Voluntária da área da saúde, ela contou com o engajamento de funcionários em ações de solidariedade durante o período de férias coletivas. “Quando vi a necessidade dos hospitais, chamei aqueles que podiam vir trabalhar para ajudar.”

Ela e 40 funcionários colocaram a mão na massa para costurar máscaras, jalecos e outros itens de proteção. “Em vez de ficar em casa pensando na fábrica fechada, gastei meu tempo fazendo o bem.”

A velha receita de sucesso que diz ter aprendido na colônia: trabalhar, fazer o certo e ajudar os outros.​

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