Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu maternidade

A saga de Adriana Araújo para ver a filha caminhar com as próprias pernas

Em livro, apresentadora da Record relata trajetória de Giovanna, desde o diagnóstico de uma síndrome rara à faculdade de medicina e sua luta para fabricar luvas especiais

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Ela abre a bolsa e retira um par de luvas. Uma delas é estreita, em um formato especial para se moldar a dois dedos apenas.

Adriana Araújo, 48, exibe o objeto de látex, tão comum, como se fosse troféu. E é.

Simboliza a vitória após uma prova de resistência: a maratona para tornar autônoma a filha portadora de uma deficiência congênita.

Há 23 anos, Giovanna nascia com uma síndrome ortopédica rara, a hemimelia fibular, diagnóstico que fez nascer também uma mãe determinada a fazer a sua menina superar o rótulo de "deficiente".

Era o começo de uma jornada extraordinária contada pela apresentadora do "Repórter Record" no livro "Sou a Mãe Dela"(Globo Livro, 328 págs., R$ 44.90), que será lançado nesta sexta-feira (13).

"Escrever foi emocionante e terapêutico, uma maneira de colocar pra fora, transbordar", afirma Adriana.

Em 2015, a apresentadora escreveu uma carta ao médico que recomendara amputar a perna direita da filha.

A reportagem publicada pela Folha foi um primeiro desabafo público de uma mãe que via sua filha caminhar com as próprias pernas rumo à universidade, ao ser aprovada no vestibular de medicina aos 18 anos.

A carta abriu a comporta de uma escrita terapêutica que resultou em livro. "Sem a pretensão de ser manual para pais e filhos na mesma situação", explica a autora.

O texto fala ao coração de 8 milhões de mães que deixam a maternidade com uma criança com algum tipo de deficiência.

É o relato em 328 páginas da batalha cotidiana para garantir a autonomia de Giovanna, construída desde o berço, passando por dez cirurgias para reconstrução dos pés e alongamento ósseo.

Uma jornada que foi deixando para trás prognósticos pessimistas, preconceitos e estigmas.

"Fui pega de surpresa pela reconstrução dos momentos marcantes que vivemos", escreve a filha na apresentação do livro, quando confessa que começara a ler com a intenção de não autorizar a publicação.

A primeira leitora e personagem central da história acabar por agradecer o olhar de sua parceira de aventuras e desventuras, com quem dividiu os melhores e os piores momentos –dos sofridos pós-operatórios à entrada na universidade.

Nessa corrida de longa distância, a mãe de Giovana virou a "louca das luvas", até passar o bastão para a filha com a chegada da primeira remessa do acessório de proteção, essencial para uma estudante de medicina e futura profissional da saúde.

O problema inesperado mobilizou muita energia de Adriana durante dois anos. A solução foi encontrada no outro lado do mundo. A jornalista revirou o Google até descobrir que as luvas sob medida poderiam ser feitas na Malásia.

A busca sem fronteiras virou obsessão, frente à sequência de nãos. Adriana chegou a cogitar montar uma fábrica de fundo de quintal para produzir as luvas da filha.

Chorou de alegria ao se deparar na internet com o caso de um dermatologista americano que tem a mão no mesmo formato da Giovanna. "As luvas da minha menina existiam", encheu-se de esperança a brasileira.

O médico da Flórida nunca respondeu aos e-mails da mãe aflita, mas um amigo fez contato com o então embaixador brasileiro na Malásia, fundamental na busca de um fabricante local.

Em paralelo, a procura no Brasil também gerou resultado. Um fabricante de São Roque (SP) respondeu ao apelo de Adriana e se mostrou disposto a fabricar as luvas de Giovanna.

Aliou-se a Adriana na aventura de mandar fazer moldes na Malásia, até chegar a uma modelagem satisfatória para a estudante brasileira.

"Aceitar o pedido foi como dizer a uma jovem de 21 anos que ela pode ser médica e terá luvas para trabalhar a vida inteira, mesmo tendo nascido apenas com dois dedos em uma das mãos", afirma a mãe.

Em 9 setembro de 2019, Giovanna recebia em casa 500 pares de luvas que se moldavam à sua mão "hang loose", com a mãe carinhosamente apelidou o membro disforme.

"Minha menina agora tinha luvas suficientes para dissecar o cadáver que já esperava por ela no laboratório de anatomia", festejou a apresentadora.

Mãe e filha fizeram questão de estarem presentes no dia em que foi produzido o primeito lote na fábrica a 70 km de SP.

Elas acompanharam a imersão dos 14 moldes de uma mão com dois dedos para dentro de um tanque de látex de onde saíram as luvas especiais. "Parecíamos crianças em um parque de diversões", compara a jornalista.

A euforia da mãe tinha um sentido. "Eu me sentia em paz por estar dando os instrumentos para a minha filha trilhar a própria jornada, ser a médica que ela quer ser."

Era simbólico também pelo fato de durante duas décadas Adriana ter focado nas cirurgias corretiva da perna e dos pés deformados.

A mãe imaginava ter solucionado a questão da mão quando aos 3 anos a filha foi submetida a uma cirurgia para girar os dois dedos da mão e assim ganhar a função de poder pinçar objetos, por exemplo.

"A falta de luvas fez cair a ficha. Bateu uma culpa por não ter pensado antes naquela necessidade especial de Giovanna."

Mais um turbilhão emocional que fez Adriana passar em revista a trajetória das duas e entender que muitas vezes procurou reparação para a filha.

O título do capítulo "os dedos que eu não dei" é revelador.

"Resolver a questão da luva foi importante ainda como instrumento que simboliza a passagem de bastão para ela, de poder vê-la caminhando e encaminhada", avalia a apresentadora.

A mãe entendeu também que a jornada das duas não era tão particular. Elas foram procuradas por outra estudante de medicina de Brasília que empreendia a mesma saga por luvas especiais.

Após uma postagem no Instagram, mãe e filha trocaram mensagens e um telefonema com um casal que acabara de receber o dignóstico de que a filha vai nascer com a mesma síndrome grave de Giovanna.

"Foi uma conversa emocionante em que fiz aqueles pais enxergarem as possibilidades e não as limitações", relata Adriana. "Foi a minha forma de encarar. Não existe cura. O milagre possível foi fazer a Giovanna caminhar."

A jornalista mineira engravidou aos 25 anos, pouco tempo depois de estrear como repórter no "Jornal Nacional" na Globo, o noticíário mais imporante da tevê brasileira, para orgulho da família mineira de origem operária.

A jornalista foi a primeira da família materna e a segunda da paterna a conquistar um diploma universitário.

Seria a primeira também a apresentar a avó uma bisneta portadora de deficiência. Teve que aprender na prática o que é hemimelia fibular, uma deformidade congênita que fez a filha nascer sem a fíbula em uma das pernas.

A ausência do osso de sustentação e de dedos das mãos e dos pés exigiu uma série de cirurgias de alongamento ósseo e correções do pé torto congênito.

Adriana relata no livro o choro na maternidade por não ter dado à sua menina o corpo "normal", diante da confirmação dos problemas sugeridos pelos borrões do ultrassom.

Lágrimas que secaram para criar anteparos contra estigmas. Intuitivamente, Adriana se deu conta de que era preciso fortalecer a autoestima da filha, como escudo antijulgamentos.

Aos 6 anos, Giovanna demonstrou à mãe que a estratégia estava funcionando. "Não sou tadinha, posso fazer tudo que você faz", respondeu ela para uma amiguinha no parquinho em Brasília, para onde Adriana fora transferida.

A tarefa maior da mãe foi ajudar a filha a construir um olhar de acolhimento por si mesma.

"É um desafio para a vida toda, lidar com a dureza do olhar alheio", escreve Adriana. "Eu tive de ensinar enquanto aprendia que o olhar do outro não poderia me definir como mãe."

Uma lição que se materializou no episódio da mãe e a luva. Assim como o romance de Machado de Assis, "A Mão e a Luva’, trata-se de uma metáfora de amor.

De mãos dadas, Giovanna e Adriana provaram que um diagnóstico grave, rótulos e cicatrizes não as definem nem limitam.

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