Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Favela Marte começa sua 'corrida social' para vencer a pobreza

Projeto-piloto de R$ 42 milhões comandado por Edu Lyra no interior de SP é protótipo para erradicar miséria antes da conquista do espaço por bilionários

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Edu Lyra, de Astronauta, uma montagem feita pela equipe da Accenture, parceira na modelagem econômica do projeto-piloto na Favela Marte, a primeira 3D, uma nova metodologia de combate à pobreza Montagem sob foto/Accenture/Divulgação

​Ao mesmo tempo em que Jeff Bezos fazia sua primeira e breve viagem espacial nesta terça-feira (20), o brasileiro Edu Lyra começava uma “corrida social” para aplicar ciência de foguete na erradicação da pobreza no Brasil.

O novo lance rumo ao espaço empreendido pelo bilionário norte-americano coincidiu com a incursão do fundador da ONG Gerando Falcões pela primeira Favela 3D (Digital, Digna e Desenvolvida) do país, em São José do Rio Preto (SP).

A bordo de um trailer, Lyra passou quatro dias com 240 famílias de uma ocupação até então conhecida como favela da Vila Itália. Foi rebatizada de Favela Marte, em assembleia aberta aos 634 moradores, no dia anterior ao voo do homem mais rico do mundo ao espaço.

“A minha angústia é ter uma corrida espacial ao mesmo tempo em que a desigualdade tortura as pessoas mais pobres condenadas a uma vida sem infraestrutura, com fome, sem água nem oportunidades em pleno século 21”, afirma Lyra.

O lema do empreendedor social nos últimos anos tem sido o de fazer da miséria peça de museu antes de Elon Musk, o dono da Tesla e da SpaceX, povoar Marte.

“Se a Nasa tivesse estudando os nossos mecanismos de sobrevivência na favela já teria construído um boteco em Marte”, brincou o líder comunitário Benvindo Nery, na reunião do comitê gestor do projeto.

“Como se pode pensar em habitar Marte sem resolver os problemas da Terra com tanta gente com fome e frio no nosso planeta?”, indagou o líder social, que em 2016 se transferiu para o terreno ocupado por um grupo de sem-teto da região havia dois anos.

Critícas do tipo fizeram Bezos anunciar doação de US$ 200 milhões para projetos sociais ao retornar do espaço.

A fala de Nery inspirou a mudança do nome da ocupação, a partir de agora laboratório de uma metodologia inovadora que a ONG Gerando Falcões pretender replicar em comunidades carentes Brasil afora.

“É o maior desafio da minha vida e também da sociedade brasileira: entregar o melhor para quem é pobre. Fazer a política pública entrar pela porta do favelado”, diz Lyra.

Nascido em favela, o empreendedor social fez uma imersão do sábado (18) à terça-feira (21) no projeto-piloto em uma comunidade com o nome do planeta vermelho, onde serão investidos R$ 42 milhões ao longo dos próximos três anos.

“É curioso dormir aqui, muita coisa passa pela cabeça. Dormia na favela quando era criança, depois fui para a periferia e quando casei consegui dar uma estrutura de moradia para minha família”, relata Lyra, em vídeo gravado às 5h30 da manhã, após a primeira noite na ocupação.

A temperatura mínima na região tem variado de 8oC a 17oC. “Fez muito frio. Fiquei pensando nas famílias que não têm cobertor, dormindo em casas autoconstruídas com entulho, papelão, bambu.”

Lyra vivenciou também a falta de água, problema crônico que atormenta a rotina dos moradores, obrigados a fabricar “tecnologias de sobrevivência” em meio à escassez e ao abandono.

Caminhou por vielas sem asfalto nem saneamento e equipamentos públicos, realidade dos 16 milhões de brasileiros espalhados por 14 mil favelas no país, segundo projeção do IBGE.

A partir do diagnóstico do território e de suas demandas, Lyra, um dos destaques de 2020 no Prêmio Empreendedor Social em Resposta à Covid-19, apresentou soluções cocriadas com a comunidade.

Desse processo saiu uma Mandala de Impacto Social, em que cada pétala representa uma necessidade mapeada.

Entre os eixos de transformação, estão moradia digna, acesso à saúde, geração de renda, autonomia da mulher, direito à educação e apoio à primeira infância, cidadania e cultura de paz.

“Pobreza é multidimensional e precisamos atacá-la de forma multisetorial”, afirma o fundador da Gerando Falcões. “Para isso vamos promover a integração das políticas públicas e de tecnologias sociais no território.”

A inovação da Favela 3D é uma visão sistêmica no enfrentamento da miséria para fazer essa mandala girar de uma só vez, por meio de um Plano de Decolagem Familiar.

“Feito todo o mapeamento da geografia social, física e humana da favela, temos os dados para conectar cada morador e cada família com as soluções de que precisam para se desenvolver”, explica Lyra.

O plano gestor de desenvolvimento local e pessoal, a integração de políticas públicas, mais metas e coleta sistemática de dados, das fragilidades e potencialidades da comunidade, é o somatório que Lyra chama de ciência de foguete aplicada ao combate da pobreza.

Uma espaçonave, no caso, em fase de decolagem. “A mais difícil”, admite Lyra, sobre a etapa atual de assinatura dos termos de cooperação com o governo do Estado de São Paulo, prevista para os próximos dias.

Com a Prefeitura de São José do Rio Preto já foram assinados os acordos para garantir a regularização fundiária de todos os lotes ocupados.

“Os moradores passam a ser proprietários, vão ter escritura. Isso é transferir riqueza”, diz Lyra. “Mas só dá a casa não significa transformação social. Se não tem um lar, o cara vende. É preciso entregar junto uma série de coisas.”

O município também se compromete com toda a oferta de infraestrutura: asfalto, saneamento, água potável e energia. “Entra com todos os serviços que o cidadão do Jardim Europa tem”, afirma Lyra, em referência ao bairro nobre da capital paulista.

O governador João Doria (PSDB) se comprometeu com a construção das casas. “Todos os barracos vão ser derrubados para dar lugar a um conjunto habitacional e a uma praça da cidadania”, explica Lyra.

Até a entrega das chaves, previstas em dois anos e meio de acordo com a modelagem econômica feita pela Accenture, os moradores vão contar com aluguel social ou moradia provisória.

O projeto de urbanismo social está sendo viabilizado ainda por meio de parcerias com a iniciativa privada, com empresas como Gerdau e CCR.

“Mas só a infra não muda a vida do cidadão”, afrima Lyra, que já garantiu R$ 15 milhões em doações de empresários como Jorge Paulo Lemann, Olavo Setúbal, Alfredo Villela e a família Diniz.

A Favela 3D pressupõe um grande acordo envolvendo governo, empresas, favela e as ONG. “A Gerando Falcões é o orquestrador desse ecossistema”, explica o empreendedor social.

Com apoio da inciativa privada, a Favela Marte, onde a renda per capita é de R$ 199 e o desemprego atinge 71% dos moradores, passará a contar com cooperativas de reciclagem e de costura para mulheres (52% das famílias são chefiadas por elas), além de hortas comunitárias.

Com internet gratuita disponível, os microempreendedores locais vão estar conectados com plataformas de ecommerce.

“É uma responsabilidade e um privilégio aplicar uma metodologia que vai de fato reduzir a desigualdade”, diz Amanda Oliveira, 32, fundadora da Instituto As Valquírias, ONG local da rede Gerando Falcões.

“A mandala é a inovação social que vai levantar o favelado do chão", diz a empreendedora social de 32 anos, responsável pela execução do projeto-piloto.

A Kayma, empresa do israelense Dan Ariely, guru da economia comportamental, vai fazer a avaliação de impacto social da metodologia a ser aplicada na Favela Marte. “Teremos elementos científicos para convencer mais governos do nosso sonho da Favela 3D”.

A mesma tecnologia social será replicada na favela do Vegel, em Maceió, em um acordo já firmado com o prefeito de Maceió, JHC (PSB), perpassando matizes ideológicos. “O combate a pobreza é apartidário. Favela não é de direita nem de esquerda. Só quer ir pra frente”, diz Lyra.

A inspiração vem de Medellín, na Colômbia, para onde o empreendedor social retorna em alguns dias.

“Os colombianos foram os mais efetivos da América Latina. Não descontinuaram políticas públicas", avalia. "Combate a pobreza é agenda de longo prazo, não é um projeto do governo para uma comunidade, mas de uma comunidade com o governo.”

Para o sucesso da empreitada, diz ele, é fundamental a formação e capacitação de lideranças. Tarefa da Universidade de Líderes Sociais, outro braço da Gerando Falcões.

De volta a São Paulo, Lyra ainda estava sob o impacto da intensa convivência nessa outra galáxia de “marcianos” em Rio Preto.

“Foram alguns dos dias mais tocantes da minha vida”, diz ele, ao assistir um estrato da população calejado da luta e de promessas não cumpridas restabelecer a fé em uma transformação coletiva.

“Cada equipamento e cada solução aplicada ali será por escolha do morador da favela. Não é o que eu quero ou o gestor quer”, diz ele. “A pobreza é prisão de segurança máxima e o muro é muito alto e vigiado demais para o pobre escapar. A Favela 3D é a absolvição dessa sentença.”

Em seu terceiro dia na rebatizada Favela Marte, Lyra acompanhou a chegada de caminhões-pipa, mas também o início das obras de fornecimento de água, autorizado pelo prefeito Edinho Araújo (MDB).

“É uma solução definitiva, dentro do projeto Favela 3D”, diz Nery. O líder comunitário se entusiasma diante do primeiro sinal efetivo de que a urbanização irá de fato chegar naquelas paragens. “Vamos participar da construção de um bairro que pode mudar o Brasil.”​

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