Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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A trajetória de Elize Matsunaga: de abuso e exploração sexual à prostituição

Sexo é pano de fundo de biografia da ex-garota de programa condenada por matar e esquartejar o marido, após ser vítima de violência e exploração sexual na adolescência

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Aos 15 anos, ela foi resgatada pela Polícia Rodoviária Federal em Gravataí (RS) numa operação de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes nas estradas.

Cartazes sobre o desaparecimento de Elize Araújo haviam sido espalhados por postos de gasolina.

Por trás do suposto desaparecimento da adolescente de Chopinzinho (PR) em 1996, surge o relato de abuso sexual pelo padrasto, que a teria levado para longe de casa.

Sozinha e sem dinheiro, a garota passaria a sobreviver no comércio ilegal de sexo envolvendo menores de idade ao longo de rodovias como a BR-101 e BR-158, durante 45 dias, no Sul do país.

Tais relatos de abuso e exporação sexual na adolescência e de prostituição na juventude são a espinha dorsal do livro "Elize Matsunaga, a Mulher que Esquartejou o Marido" (Ed. Matrix, 368 págs., R$ 64), do jornalista Ullisses Campbell, também autor da biografia não autorizada de Suzane von Richthofen.

Capa da biografia não autorizada "Elize Matsunaga - A Mulher que Esquartejou o Marido", de Ullisses Campbell, lançada pela editora Matrix
Capa da biografia não autorizada "Elize Matsunaga - A Mulher que Esquartejou o Marido", de Ullisses Campbell, lançada pela editora Matrix - Divulgação

O livro lançado nesta semana reconstrói a linha do tempo da trajetória de Elize no mercado do sexo, de menina prostituída à garota de programa requisitada em sites de acompanhantes de luxo em São Paulo, antes de ela se tornar protagonista de um dos crimes mais violentos da crônica policial brasileira.

Campbell não entrevistou Elize, que cumpre pena em regime semiaberto na Penitenciária de Tremembé (SP). Recebeu três cartas da detenta integrante do rol de "celebridades" do presídio onde cumpre a pena de 17 anos e 4 meses de prisão.

O jornalista reconstrói a história a partir do processo criminal e do julgamento de Elize pelo assassinato e ocultação do cadáver do marido, o empresário Marcos Matsunaga, além de conversas com advogados, vizinhos e parentes.

O livro traz ainda relatos de cafetinas, clientes e garotas de programa que teriam cruzado o caminho da biografada, que só concedeu entrevista em profundidade à Netflix para a série documental "Elize Matsunaga – Era uma Vez um Crime".

"A situação que vivi com meu padrasto não desejo pra mulher nenhuma", afirma Elize na série de quatro episódios, entre as mais vistas da plataforma de streaming.

"Eu quis esfregar minha pele até sangra. Achava que eu tinha culpa naquilo. Olhava pra mim e sentia vergolha de ser mulher", recorda-se, ao relatar ter sido violentada quando saía do banho.

Diz que pegou uma mochila e uma faca, "como se fosse me defender das coisas do mundo", pediu R$ 50 emprestado para a madrinha e caiu na estrada.

Para a Netflix, ela relata que dormiu no mato, foi perseguida por um motorista e acabou acolhida na casa de um homem, que a alimentou e a encaminhou às autoridades.

Elize não entra em detalhes trazidos no livro. "Depois de ter sido estuprada pelo padrasto, ela é expulsa de casa pela mãe que prefere acreditar na versão do companheiro de que fora seduzido", relata o jornalista.

Assim como 75% dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes no país, o abusador de Elize era alguém próximo, que ao invés de ser denunciado acabou acobertado pela mãe da vítima.

Após ser resgatada pela polícia a 700 km de onde morava e entregue ao Conselho Tutelar, Elize vai morar com uma tia e a avó. "Envergonhada, ela escondeu o que fez para sobreviver", diz Campbell.

O biógrafo traz relatos de caminhoneiros que teriam reconhecido na autora de um crime midiático a adolescente que recebia R$ 30 em troca de sexo em boléias de caminhão.

O advogado Luciano Santoro, defensor de Elize, diz ainda não ter lido a biografia. Ele confirma a trajetória de abuso, mas diz não ter se aprofundado nas vivências de adolescente prostituída de sua cliente.

"Mas fico com pé atrás com fatos narrados por caminhoneiros que dizem se lembrar de uma menina com quem cruzaram mais de 20 anos atrás."

Já os detalhes da iniciação na prostituição de luxo em Curitiba são contadas por uma enfermeira que Elize conhecera quando foi estagiar no Hospital Nossa Senhora da Graça, onde aprendeu as técnicas que seria utilizada no esquartejamento do marido.

Estella, como é chamada no livro, levava uma vida de luxo com renda extra como garota de programa.

"A carteira de clientes de Estella era invejável. Ali figuravam deputados estaduais do Paraná, vereadores de Curitiba, prefeitos do interior paranaense, empresários, executivos, advogados e uma infinidade de pais de família ricos", relata o biógrafo.

Depois de um banho de loja e de salão, Elize passa a adotar a alcunha de Kelly, nome de guerra também usado no MClass, site de acompanhantes de São Paulo, por meio do qual conheceu o futuro marido milionário.

O primeiro programa intermediado por Estella teria sido com um traficante, ligado a uma facção criminosa. O bonitão pagou R$ 1.000 pela novidade.

O teste de fogo veio a seguir, com um sexagenário grosseiro, que teria jogado no chão R$ 200 em notas amassadas de R$ 20 e R$ 50.

"Nesse tipo de trabalho, se quiser fazer dinheiro, tem de encarar o feio e o bonito, o alto e o baixo, o sujo e o limpo, o magro e o gordo", teria dito Estella à novata.

Campbell diz ter constatado que Elize entrou na prostituição para subir de vida e não por necessidade. "Ela sempre disse que queria conhecer um homem rico entre os clientes e se casar."

Cansada de guerra, a amiga dava a real. "Mesmo que o cliente se apaixone, nunca vai deixar de te olhar como prostituta."

Veredito certeiro para o casamento com Matsunaga e as humilhações que, segundo Elize, a levaram a puxar o gatilho.

Nessa loteria de sexo e amor, uma aposta de Elize teria sido no deputado estadual Mário Sergio Zacheski, do antigo PMDB, conhecido como delegado Bradock.

Ele a contratou em em 1° de junho de 2004 como secretária do gabinete na Assembleia Legislativa, sob a matrícula 301.735, com salário de R$ 800. Valor que ela cobrava por um programa na época, segundo o biógrafo.

"A verdade é que ela trabalhava no meu gabinete. Mas foi demitida quando descobrimos que era prostituta", afirmou o ex-deputado, em reportagem à revista "Veja", em trecho reproduzido no livro.

O político sempre negou que tivesse tido envolvimento com a ex-funcionária que se tornou nacionalmente conhecida como assassina do marido. Disse que o escândalo sexual foi uma armação de adversários.

O imbróglio e a demissão determinaram a mudança de Elize de Curitiba para São Paulo.


Avaliada por uma uma cafetina paulistana famosa, Campbell apurou que ela foi descartada por não se enquadrar no padrão da casa, onde modelos cobravam R$ 8 mil por um programa.

"Você pode ser prostituta de luxo em Curitiba, aqui não", teria ouvido Elize. A cafetina sugeriu que ela fizesse plástica no nariz e pintasse os cabelos para ficar com ar mais sofisticado.

Elize é encaminhada para uma boate no Baixo Augusta, onde os programas variaram de de R$ 300 a R$ 400.

Resolve apostar em sites e passa a atender em um flat. Aparece em destaque no MClass, em setembro de 2004. "Sou uma loirinha muito carinhosa", descrevia-se, mentindo a idade. Tinha 23 anos, mas dizia ter 19.

O anúncio da jovem de 1m65 e 50 kg, recheado de 22 imagens, chamou a atenção de Matsunaga, habitué de casas e esquemas de prostituição.

No "Guia de Garotas de Programa", um fórum na internet no qual ele e outros clientes davam notas para as profissionais que contratavam, Elize logo ficou bem rankeada.

"A carreira de prostituta de Elize despontou", explica o biógrafo. Era uma época, segundo a própria declarou à Netflix, que chegava a fazer dez programas por dia na temporada de Fórmula-1.

Apaixonado, Matsunaga passa a bancar a garota de programa que viraria sua esposa em 17 de outubro de 2009.

"A agenda de Elize estava bombando. Enciumado, ele pergunta quanto ela quer para ser exclusiva", relata Campbell. Ela passa a receber R$ 27 mil por mês e ganha mimos como um carro importado.

O que parecia um conto de fadas descambou para uma relação tóxica.

"Mesmo depois de casada, Elize nunca deixou de ser prostituta para o marido", avalia o biógrafo. "Ele constumava ser muito baixo quando jogava na cara que ela era uma puta."

O fato de Elize ter sido garota de programa tornou o caso ainda mais bombástico.

"Isso foi colocado de uma forma para me diminuir na condição de mulher", afirma ela, à Netflix. "Um homem contratar o serviço de uma mulher é absolutamente normal, mas uma mulher estar nessa situação [de ser paga para fazer sexo] é imoral."

Essa dupla moralidade, as brigas do casal e a predileção de Matsunaga por prostitutas foram temas bem explorados no julgamento. Ora pela acusação, ora pela defesa.

"Eu tive que demonstrar ao júri que havia outras forma de violência contra mulheres, como a psicológica. Foi importante levar essa discussão para que os jurados entendessem a história de vida de Elize, vista até então como um monstro", diz Santoro.

Professor de Elize no curso de direito, ele foi escolhido para assumir a defesa desde o momento em que a ex-aluna decidiu confessar um crime que eletrizava o país em 2012.

Segundo Santoro, Elize ainda não viu o documentário, já que não tem acesso à Netflix no presídio, do qual tem autorização para sair durante uma semana, quatro vezes por ano.

Elize Matsunaga aparece bem mais magra do que no documentário da Netflix, ao sair da Penitenciária de Tremembé (SP), onde cumpre pena em regime semiaberto, em 18 de maio - Ullisses Campbell/Divulgação

A série documental e o livro reacendem o interesse sobre o crime e a sua autora.

"Diferentemente da biografia não autorizada, a série é quase uma peça de defesa, importante para Elize se comunicar com a filha", afirma Campbell.

"No documentário, ela fala que foi prostituta para se vitimizar. No livro, a vida dela na prostituição é um elemento fundamental para entender como se formou sua personalidade criminosa."

O biógrafo conclui que o universo insalubre, em que as prostitutas vão se tornando cada vez mais frias e desprovidas de afeto, somado à desestruturação familiar e ao fato de Elize ter se unido a um marido violento resultam numa bomba que explode em um esquartejamento brutal.

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