Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Eliane Trindade
Descrição de chapéu Folhajus

Menina grávida de estuprador aos 11 teve série de direitos violados

Caso de garota estuprada que não consegue fazer aborto legal em Santa Catarina revela violências institucionais no Judiciário e na Saúde

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Aos sete meses de uma gravidez fruto de estupro, a menina catarinense de 11 anos que teve seu drama exposto em uma audiência judicial registrada em vídeo divulgado pelo site The Intercept Brasil é vítima de uma série de violações de direitos.

É a análise de especialistas e operadores do sistema de proteção e de garantia de direitos da infância ouvidos pela Folha, após a divulgação das cenas em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer, então na comarca de Tijucas (SC), e a promotora Mirela Dutra Alberton teriam induzido a garota a desistir do aborto legal.

"Você suportaria ficar mais um pouquinho?", indaga a juíza ao sugerir à criança levar a termo a gravidez fruto de violência e entregar o bebê para adoção. "Vai fazer uma família muito feliz", argumentou.

Juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina.
Juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, que ouviu a menina de 11 anos grávida do estuprador - Solon Soares/Agência ALESC

Uma felicidade às custas das dores da sua família, rebateu a mãe da vítima, aos prantos, ao pedir à juíza que a deixasse cuidar da menina que ficou 40 dias recolhida em um abrigo.

Na tarde desta terça-feira (21), a desembargadora Cláudia Lambert de Faria, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, autorizou a garota a retornar para casa após o caso ter sido noticiado.

"Essa criança que já sofreu violência sexual e enfrenta uma gravidez é revitimizada no Judiciário. Ela é castigada e vai para o acolhimento, que é um recurso extremo, enquanto o agressor é quem deveria ser punido e expulso de casa", afirma a psicóloga Lígia Caravieri, coordenadora do Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD.

Para a juíza Cristiana Cordeiro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e presidente da Associação Juízes para a Democracia, os trechos vazados da audiência em Santa Catarina nesta segunda-feira (20) geram uma avalanche de indignações.

"Em momento algum, os direitos daquela menina gestante por estupro são levados em conta", afirma a magistrada. "O que se vê naquela audiência é um despreparo gigantesco dos operadores da Justiça para tratar com as pessoas."

Segundo ela, as falas da juíza e da promotora dão a entender à criança e à mãe dela que seria um crime não prosseguir com a gestação, o contrário do que diz a lei que autoriza o aborto se tratando de estupro e no caso, presumido, por se tratar de menor de 14 anos.

"Transformaram as duas em criminosas, e não em vítimas, ao desumanizar a criança e tratar o feto como bebê", afirma a magistrada, para quem os termos e os argumentos usados na audiência judicial são próximos ao crime de tortura.

A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público anunciaram a abertura de procedimentos internos para averiguar as condutas da juíza e da promotora no caso.

"Esse é um caso grave de violência institucional, ao submeter uma vítima de estupro a procedimentos desnecessários ou invasivos que levaram à revitimização", avalia o advogado Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos do Instituto Alana.

A lei de abuso de autoridade estabelece para casos de violência institucional pena de 3 meses a 1 ano de detenção e multa.

É apontado também o descumprimento da lei da escuta protegida para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Depoimento especial de vítima de violência sexual em audiência conduzida pela juíza Julianne Nogueira, em Vitória da Conquista (BA) - Eliane Trindade / Folhapress

Desde 2017, a Lei 13.431 estabelece uma série de protocolos para a evitar a revitimização em processos judiciais ou administrativos.

"São raros os municípios que implementaram a lei", afirma Itamar Gonçalves, gerente de programas da Childhood Brasil. Segundo ele, apenas cerca de 900 salas de escuta protegida foram instaladas no país. "O judiciário ainda é o órgão que mais viola direitos da criança."

A escuta protegida (na esfera administrativa) e o depoimento especial (em juízo) devem ser realizados por psicólogos ou assistentes sociais treinados e em salas especiais. O relato da criança é gravado de forma que ela não precise repetir a mesma história na delegacia, no IML e em juízo.

"Profissionais capacitados fazem as perguntas de forma que não sejam vexatórias, estigmatizantes e violentas como as que foram feitas nesse depoimento em Santa Catarina", explica Hartung.

O advogado ressalta o impacto dessa violência institucional no desenvolvimento da vítima catarinense. "As palavras utilizadas e as perguntas geraram constrangimento. E não levaram em consideração o sofrimento psíquico e biológico da vítima. É uma nova violência."

O depoimento registrado no vídeo vazado para a imprensa em um processo que corre em segredo de Justiça teria ocorrido em 9 de maio, quando a vítima de estupro já estava na 22a semana de gestação.

Dias antes, a garota tivera negado seu direito a um aborto legal ao bater as portas do Hospital Universitário de Florianópolis. A equipe médica, porém, recusou-se a realizar o procedimento alegando que gestação já passava de 22 semanas, limite recomendado por uma norma do Ministério da Saúde.

"O código penal não coloca limitação de semanas para o aborto legal. A denúncia da criança e da mãe da vítima deveria ter sido levada em conta e o abortamento realizado sem questionamento", entende a advogada Adriana Borghi, membro do Instituto Brasileiro de Direitos da Criança e do Adolescente (IBDCRIA).

Para Denise Casanova Villela, procuradora de Justiça do Rio Grande do Sul, esse caso evidencia as falhas em toda a rede de proteção à infância. "Onde estava a escola, o posto de saúde? Como uma criança de 10 anos grávida e estuprada passa incólume por todos até chegar ao sistema de Justiça com 22 semanas de gestação?".

As sucessivas violações de direitos da vítima acontecem em um contexto em que as violências sexuais são invisibilizadas, de acordo com Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta.

"Tudo isso acontece porque não falamos sobre o assunto. Temos que discutir as violências criminosas e as institucionais", afirma a advogada, à frente do movimento #AgoraVcSabe, para acabar com o silêncio em torno do problema.

"É o tipo de violência que acontece todo dia no país, onde quatro meninas são estupradas por hora", diz Luciana.

No ano passado, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos divulgou relatório sobre Estupro Presumido, envolvendo menores de 14 anos no Brasil.

O estudo revela que 25 mil meninas entre 10 e 14 anos se tornam mães, em média, por ano, de acordo com levantamento entre 2010 e 2019, com base em dados do Sistema Nacional de Nascidos Vivos e do Sistema de Informação de Mortalidade, do Datasus.

São 69 crimes presumidos por dia, uma vez que cada bebê nascido vivo foi gerado em um estupro de vulnerável, conforme a legislação brasileira define sexo com menores de 14 anos, independentemente de ter havido consentimento.

O estudo foi realizado após o caso emblemático de uma menina também de 11 anos do Espírito Santo que precisou ser levada a Pernambuco para conseguir fazer o abortamento legal, após ser abusada sexualmente dos 6 aos 9 anos por um familiar.

OUTRO LADO

Em nota, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina informa que o "processo referido está gravado por segredo de justiça, circunstância que impede sua discussão em público", não cabendo manifestações a não ser por seus órgãos julgadores.

Procurada pela reportagem, a juíza não quis dar entrevista.

Também por nota, o Ministério Público esclarece que assim que o Conselho Tutelar teve ciência da situação, imediatamente encaminhou a criança ao Hospital Universitário de Florianópolis para realização do abortamento, não realizado em virtude da já avançada gestação.

A 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Tijucas então ajuizou ação pleiteando autorização judicial para interrupção de gravidez assistida e medida protetiva de acolhimento provisório.

"Esse pedido não foi realizado em razão da gravidez, mas sim com o único objetivo de colocá-la a salvo de possíveis novos abusos, principalmente enquanto não finalizada a investigação criminal que poderia indicar se o estupro ocorreu ou não no ambiente familiar", diz a nota.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.